sexta-feira, 3 de novembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Das 10, a mentira mais valiosa da minha vida
(Virgínia Finzetto)

Era maio de 1982, eu tinha uma Brasília amarela. Naquela tarde, eu estacionara em uma vaga na rua, bem em frente a uma casa lotérica, e fui fazer compras. Na volta, resolvi entrar para fazer um joguinho, antes de ir embora. Saí e lembrei que havia me esquecido de comprar frutas. Havia um mercadinho bem perto dali. Então abri o carro, joguei as sacolas dentro e, nessa correria, larguei o bilhete e o troco dentro de uma delas. Depois de meia-hora, eu volto cheia de sacolas com novas compras quando noto que as outras não estavam mais ali. Cacete!... na pressa, eu esquecera também de trancar o carro, pensei. Fiquei muito triste com o roubo, mas entrei no veículo e fui em frente. Já lá em cima, antes de eu virar para entrar na minha rua, vi um sujeito agachado na calçada vasculhando uns embrulhos, que, imediatamente, reconheci como sendo minhas coisas. Quase dei um cavalo de pau ao frear e acabei estacionando bem no meio da rua. Desci do carro aos berros, chamando o cara de todos os palavrões. Nesse mesmo instante, vinha subindo a polícia com a sirene acionada. O suspeito, sentindo-se ameaçado, conseguiu fugir correndo, como quem sai catando coquinho no chão, largando tudo pra trás. Eu, por outro lado, fiquei muito feliz com a sorte de ter recuperado minhas
compras, mas, quando me viro em direção ao meu carro, vejo a viatura da polícia queimando os quatro pneus na brusca parada bem em cima da minha Brasília. Largo tudo e coloco as mãos na
cabeça, ao ver que desceram dois policiais com armas apontadas para mim. O susto foi tão grande que quase desfaleço, porque, se eles tivessem amassado a minha caranga, eu teria que arcar com aquele preju sozinha. Enquanto pensava sobre a sorte de meu carro não ter sofrido nenhum dano, um dos policiais, como é de praxe, pediu minha habilitação e os documentos do veículo. Eu entreguei tudo e, assim que eles confirmaram o equívoco, me liberaram. Entro no carro e fico ali sentada por
alguns minutos tentando recuperar meus sentidos. Fui embora com o coração ainda disparado de tanta emoção. Depois de andar mais alguns metros adiante, eu vejo novamente a polícia, a mesma que havia me abordado, apontando armas agora para um sujeito, o mesmo que havia me roubado. Ele,
com as mãos na cabeça, e uma sacola no chão, ao seu lado. Ahhhhh...pensei, maldito bandido, conseguiu fugir levando uma de minhas sacolas! Imediatamente parei o carro e fui lá tirar satisfação. Os policiais, reconhecendo a Brasília amarela começaram a discutir entre si, ora apontando a arma para o bandido, ora para mim, porque desconfiaram que EU, que reaparecera para eles, fosse cúmplice do larápio. Depois de muitas explicações, consegui convencê-los de que EU era a vítima, e que havia parado ali exatamente para recuperar o resto das minhas compras, ou seja, a sacola que estava ali bonitinha no chão. Resumo da ópera: das 10 sacolas de compra, exatamente NAQUELA é que estava o bilhete de loteria, ainda com o troco! No dia seguinte saiu o resultado, e eu havia feito a quina sozinha. Quase enfartei! Demorei muito a me recuperar do susto. Perdi o sono, já não comia mais, tamanha a ansiedade e o temor que tomaram meu corpo e minha alma. Durante um tempão fiquei com o bilhete, olhando toda hora para ele, conferindo os números no resultado do recorte do jornal e guardando em seguida o bilhete em um lugar seguro. Repetia esse ritual quase que diariamente, só pensando no que deveria fazer. O prêmio era muito alto, iria mudar radicalmente minha vida. E eu me perguntava se estava preparada para isso. Até que um dia, decidi ir resgatar o prêmio, assim de supetão, como quem não quer nada. Estacionei minha Brasília amarela bem em frente à Caixa Econômica Federal, desci firme e resoluta, com a bolsa a tiracolo, quando, ao olhar para a esquerda, vejo um sujeito se aproximando a passos largos em minha direção. Mas, assim que eu o reconheci como sendo o mesmo ladrão, aquele que havia roubado minhas compras do carro há meses com o bilhete que estava na última sacola que eu recuperara, ele deu um puxão com muita força na minha bolsa e fugiu com ela em disparada. Nessa hora, não havia nenhum policial por perto, não havia nenhuma viatura em alta velocidade e não houve nenhum déjà vu. Só havia meu coração colapsado. Só havia o eu que nunca mais se recuperou desse episódio. Moral real desse meu conto imaginário: um raio não cai no mesmo lugar, mas pode infernizar a vida de uma mesma pessoa por várias encarnações.

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