sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

CONTOS CORRENTES

 Piquenique
(Vanessa Maranha)

Sei não. Ele anda arisco que só. Desaba na cama e em dois minutos já era, ausentado de mim, de nós, submerso no mais profundo dos sonos. Cheguei a pensar em bebida, mas não, que mau cheiro de cachaça, cevada azeda ou malte entranhado não há. Entorpecente? Será que?
Farejei-lhe furtivamente as camisas no cesto de roupa suja ao longo das últimas semanas, mas nada de realmente incriminador havia, senão evolação de pastel, fumaça e suor. Ele nunca foi adepto a colônias ou essências, desodorantes, só os sem cheiro. Não havia a menor insinuação de perfume feminino naquelas roupas, apenas cheiro de homem mesmo, o que poderia  sugerir... 
           Impossível. Ah, se não me seguro começam a florescer em minha mente imagens grotescas. Verdade mesmo é que nunca se sabe. O cheiro de pastel parece renitente. Todos os dias a gordura rançosa impregnada nos fios de algodão de suas camisas sempre brancas. Fui hoje mesmo à pastelaria pegada à firma onde ele trabalha. Não me pareceu, em nada, suspeita. Mas bem pode suceder de ser um ponto de encontro.                      
          Ah, que ainda faço amizade com a turma de atendentes, com o caixa com pinta de nordestino galante e então veremos se não me darão a ficha completa do comportamento do Adalberto, esse que suspeito não reconhecer quando longe de mim. Se bem que como quem não quer nada, com a desculpa de uma suposta cobrança, eu o descrevi para a senhora que é dona do estabelecimento –
Adalberto é inconfundível; cabelos cor de laranja e vesgo de um olho – e ela me disse que um homem assim sempre ia buscar pasteis, um de queijo e um de carne, às três horas de todas as tardes e que pedia embrulho para viagem. Também gostava de levar uma garrafa de meio litro de suco de abacaxi.                                                                                                           
Na hora não atinei. Fiquei encravada na ideia de que ali se encontrasse  com alguém. Ora! Engano meu. Ele leva os pasteis para a tal pessoa! É isso.
Ontem mesmo foi dia de pastel. Sempre de poucas palavras, chegou exausto em casa. Nem reparou no meu novo corte de cabelo, nas minhas unhas pintadas com o vermelho mais escarlate que pude encontrar. Mostrou um interesse muito chocho pela notícia de que na semana que vem inicio um curso de strip tease junto a outras mulheres casadas que como eu, vêm pressentindo a queda inexorável de uma peteca que procuram segurar no ar a qualquer custo.  
A considerar os dois apetites humanos essenciais, tenho tentado de tudo, da mesa à cama: pavê de amendoim, caldo de mocotó, camisola com estampa de onça, perfume almiscarado, velas perfumadas. As coisas, no entanto, parecendo já cristalizadas numa dolorida apatia. Que esse homem calado, esvaziado, me leva à loucura! Uma hora desatino e ele me paga. Olho por olho, dente por dente, Lei de Talião, cada um dos seus desfrutes será devolvido com o acréscimo de juros.               
Protelo ao máximo, porém, a necessidade de segui-lo. E se eu acabar por confirmar qualquer uma dessas coisas que me passam pela cabeça confusa por todo esse seu silêncio de chumbo, a violenta indiferença de que esse homem é capaz? O que vou fazer?  Se bem que essa fumaça impregnada nas camisas possa vir do dióxido de carbono no trânsito... ou dos cigarros de alguma ordinária. 
Ele me diz que minha cabeça vive cheia de ruídos, pergunta com cara de anjo: “como é que se pode sobreviver assim?”, e eu desconverso, porque sinceramente, não conheço outro modo de existir.
Faltam agora dez para as três. É agora a hora do crime. Que te encalço, que te pego com a boca na botija, Adalberto. Vamos calcular aí uns quarenta minutos, o justo prazo de você buscar os pasteis encharcados de colesterol com suco de abacaxi e a azia como brinde. Bem, será o tempo de apanhar a sacolinha na pastelaria para o seu piquenique mixo e chegar a um pardieiro qualquer para se refestelar. Então, interrompo. Se interrompo. O celular já está aqui na minha mão, número teclado, conecto, deixando o meu número sigiloso para que o seu identificador de chamadas não me reconheça.        
E então você atende, a voz mais alegre do mundo, inflexão de menino repetindo alô, alô, pacientemente ao meu silêncio. Tento decifrar os sons ao fundo e, de repente  escuto, clara, anserina, grasnada, quase sempre causativa, já meio grave pela idade, a voz da sua mãe, perguntando inquisitiva-mandona, num falsete:      
      - Quem é ao telefone, Bertinho?






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