CONTOS CORRENTES

Quaresmal 
(Ernane Catroli)

(...) to live with my mother in her old age, and mine.
R. Carver.


Conhece-os de outras paragens e os procura pelos cômodos da casa . Tão pálidos . E trazem todos as mãos ocupadas. Uma gaiola, um anzol, uma bússola, um isqueiro aceso. Borboletas de asas urticantes voejam ou pousam nas paredes, nos móveis. Já antes, as estampas de santos em molduras, entremeadas de espinhos e cacos de vidro - como dentes afiados - no chão que pisava. E naõ sei se já
disse que tomamos conta de um menino. Um menino inquieto. Agora ele deve estar na
escola. E não esqueça que preciso ir para a minha casa. Por que ainda estamos aqui?

Que perdeu dois filhos, a coragem, os dentes, o brilho dos olhos. Dois filhos. Enquanto seu pai não chegava do trabalho, ficava com eles na minha cama até o sono chegar. E seu pai sempre atrasava. Daquela vez, era tarde avançada quando fui buscá-los seguindo pela estrada de terra batida até aquela primeira meia curva. Tinham saído muito cedo para pescar e armar arapuca para passarinhos. Paixão por passarinhos. Passava muito da hora do almoço. O bambuzal tombado
pelo vento. O zumbido do vento. Um temporal. Os meus gritos. Quanto às alianças de noivado, ali mesmo na loja colocamos nos dedos. Sábado. Manhã de sábado. Agora elas estão aqui. Dentro da minha viuvez. Dentro do pesadelo.

Antes de dobrar a esquina me virei. Ela acenava da entrada do beco sob a luz amarela de um poste da avenida. Vou aguardar as cartas. Madrugada. Último horário do ônibus.

Anoitecia quando deixamos o consultório do médico. Enquanto esperávamos um táxi, ela baixou a cabeça, brincou com um botão frouxo da minha camisa; secou uma lágrima. De mãos dadas ficamos em silêncio. Um misto de dor e compaixão. O amor mais forte agora. A revolta. Também ódio. E o meu medo mil vezes aumentado. Algo muito grave nos aconteceu. Foi quando comecei a me despedir.