sexta-feira, 13 de abril de 2018

CONTOS CORRENTES

RELATIVIDADE
(Edmar Monteiro Filho)

“Somente num mundo virtual a mão pode ao mesmo tempo desenhar e ser desenhada, pode um plano ser ao mesmo tempo piso e parede e pode uma mesma escada ser usada na mesma direção para subir e descer.”
M. C. Escher

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            Entre as engenhosas peças de madeira, o cadáver intacto de um botão de rosa, um envelope endereçado a ela e um molho de pequenas chaves: enfim, as razões para todo aquele ruído.
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Por isso, a caixinha de segredo atirada ao chão com impensada e perfeita fúria para vê-la aberta, em pedaços e surpresas.
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Anos e anos, toda uma vida de girar, apertar, torcer o objeto gasto de insucessos, essa diversão de perdida graça, tempo perdido em encontrar a solução, agora não apenas para o cloc-cloc dos pequenos blocos de madeira, deslizando ou se negando uns sobre os outros, mas de alguns metais batendo-se no conteúdo. Encaixes para nada, jogo para nada, até os limites de uma tolerância que julgava eterna.
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Aberta e revirada sobre a cama, para espalhar conteúdo: camisa nova na embalagem, cigarro, infalíveis exemplares de Tex, meias, cuecas, alpargata uruguaia
embrulhada em jornal, desodorante, a navalha Eber, pincel de barba de texugo, pijama engorovinhado, camisetas, vidro de Lancaster, bermuda e a velha caixa mágica, de abertura jamais revelada, para divertir as crianças e irritar os adultos.
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Trancou-se no quarto esperando as lágrimas. No canto, a bagagem mínima que acompanhara o caixão. Não a velha mochila roída de tempo e viagens, porém mala de couro, de chamar atenção, tão nova e brilhante.
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Neusa agradeceu aos amigos, beijou os filhos, mas recusou-se a ir ao cemitério. Preferível estar só.

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Do lado de fora, os olhos duros da mãe esperando o filho, armada de dor para ofender a viúva.
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O padre encerrou a benção. Eram horas. As irmãs do morto choravam de tristeza e ódio. Dois dos três meninos para carregar o caixão, mais os cunhados e uns vizinhos, porque esse caixão de peso absurdo, talvez madeira boa, acreana. Mas quem haveria de usar madeira boa para embalar defunto?
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Que viessem poucos para as homenagens não estranhava: devia para os conhecidos, perdera os amigos com os negócios escusos, as notas e a palavra não honradas.
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Ao redor da mesa, reforçada com cavaletes, os poucos quinze: os mais fiéis e próximos na amizade ou no sangue, os três meninos, Neuza, o padre.
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As pessoas foram entrando, acomodando-se na sala. O caixão, num carrinho, transpôs os três degraus da entrada com esforço bruto. Para passar à mesa no centro da sala contou com ajuda e só cedeu depois de muito, empurrado.
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Neuza informou a tampa lacrada. Iam chamar alguém para arrancar a solda? Antônio morto há três dias: imaginassem o estado. Era o tempo de rezar por ele, o padre abençoar e enterravam dali a três horas.
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Entraram as cunhadas com os maridos. Lucia falou cuspindo indignação. Depois de tudo, tanta ajuda, agora o desaforo. Ia ver o irmão de qualquer jeito. A mãe não passava da porta se não abrissem o caixão.
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Como não? Por que a decisão era dela? Não valia de nada a vontade da mãe? Tinha direito de ver o filho, um minuto que fosse. Neuza passou constrangida, ignorando choro e grito, ignorando uns pêsames. Foi abraçar os filhos.
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O rabecão chegou a casa e as pessoas já esperavam do lado de fora, no jardim: a sogra, amparada por Lucia e Elídia, atravessada diante do portão. Neuza desceu seu cansaço. Cabeça baixa para anunciar que o caixão lacrado não se podia abrir.
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Ela se despediu com a gratidão que podia, viajava com pouco dinheiro. O japonês recusando por ambos, que já haviam sido bem pagos. Antônio era seu amigo, seu mentor. Precisasse dele, quando fosse, era dizer. Agora, embarcar no avião, esperar pelos funcionários da empresa fúnebre na chegada: tudo providenciado.


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Clareava na pista sem luz, sem marcas, só o aviãozinho de brinquedo, uma gente pouca e mal encarada para ajudar o embarque do caixão, o velho índio fazendo força e depois agradecendo a ela, emocionado.
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Sem pregar os olhos, o caixão esbarrando no banco, enfim a esperança morta sem glória, ele sozinho como nunca, ela sozinha para sempre, procurando inutilmente um sinal dele naquela última viagem derrotada. Não tinha nome o maço de sonhos, cheirando a Lancaster, que entupia as veias a ponto de sentir o sangue parado, como que esperando a ordem, a vontade, o novo trajeto a seguir. 
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O vazio negro, o chacoalhar na estrada ruim, os resmungos, só uma parada e trocar o motorista, o velho calado, o japonês respeitador, se ela precisasse tinha que ser na beira da estrada, desculpasse o mau jeito se havia tanta pressa.
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A jornada de volta, pura noite.
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A pouco mais de trinta quilômetros de Porto Velho, que estavam – ele explicou –, necessário encarar as oito horas de estrada até o Acre. Em Rio Branco os conhecidos para o embarque sem papéis, sem embaraços. Ela haveria de entender.
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Embarcado no veículo pelos homens rijos, o caixão preso em cordas, para dividir a jornada de volta com ela, o motorista, o velho, a mala do morto, uma imagem de São Miguel. As espingardas com o passageiro, uma a cada lado do banco.
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Voltou à sala. O caixão de madeira escura, desenfeitado, abrigando o corpo de um homem que Neuza não via há quase dois anos, num lugar que não sabia, gente que desconhecia. Chamou o japonês, cujo nome não entendera. “Por mim, vamos agora”, ela disse.
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Desviou os passos da chama das velas. Percorreu os cômodos: o quarto com cama e rede, guarda-roupa, mesa e cadeira; outro quarto sem janela, com vultos de caixas de todo tamanho; o fedor do banheiro; a cozinha comprida, fogão a lenha, mesa de pedra, pia, guarda-comida vazio, tudo assim, de relance.
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Ouviu a voz do japonês, em língua que não era sua, e foram saindo todos, cumprimentando ao passar por ela. Ficou o homem mais velho. O sócio do marido explicou o caixão fechado: necessidade que ela ia entender depois. Apontou um quarto adiante: a mala e os pertences do morto. Mais adiante o lavatório, a cozinha, se quisesse. Havia um tempo para estar sozinha ali, mas alertava a pressa, que era preciso estar na estrada em seguida.
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A porta aberta, ela adentrou a sala que cheirava a umidade e urina. O sol da tarde minguando, o ambiente ganhava luz do pelotão de velas que cercava o caixão sobre uma esteira. Estacou seu receio diante da gente escura que se ergueu, respeitosa. Homem velho, seminu, cabelos cinzentos caindo nos ombros, dois homens muito magros, três ou quatro mulheres, uma delas com crianças, mais outros que ela deixou de reparar.
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O destino, enfim: uns casebres amontoados a pouca luz. Ao final da rua única, passando pela penumbra de um bar de gente e mesas rústicas, música excessiva, parar diante da casa de alvenaria, judiada.  
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Ele plantava amendoim, feito todos, quando conheceu Antônio, viajante. Pente de osso, repelente de insetos, azeite português, óculos de sol, fumo de boa qualidade, vela de cera, ferramenta, ventilador, pilha para lanterna e lampião a gás, leite condensado a peso de ouro, boné e chapéu, pasta de dentes, sabonete perfumado, umas ervas dos bugres, para dor de cabeça, dor de dentes, dor nas costas e fazer sonhar: vendia muito do que ali não se achava. Amizade era pouco: admiração. O entusiasmo dele, o desejo de vida, os olhos rápidos de enxergar o que ninguém via, a generosidade. Ele largou a enxada, vendeu o que tinha, para dividir os encargos e foi viver de veras, viajando com Antônio. Rodou a floresta, dois anos de aventura para encher livro, ganhando experiência. Antônio o mestre, ele o aprendiz. Então, em Teotônio, a lavra esquecida, exaurida, disseram. Arrendou barato. Alugaram de tudo, fazer o que não sabiam foi aprender depressa. E daí, foi vindo. Muito. Vender uns carocinhos, quase nada por vez, para não chamar atenção de gente ruim, desgostosa de não se dar bem com tanto chão vazio. Guardar o resto. Mas o olho brilhante de Antônio era alegria e era também febre, de uma brava, como que despeitada pela boa sorte deles. Já preparava a volta quando a doença chegou. Pensou que durasse para mostrar a ela os sonhos que tornara reais.
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Quando ela quebrou o fascínio pela paisagem nova, perguntando de vez quem era ele, aonde iam e o que o marido fazia, o japonês completou o que restava do trajeto com uma história que ela não precisou de esforço para aceitar como verdade.
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Mergulhada no ar condicionado do jipe de luxo, Neuza não contou as quase oito horas de chão batido, balsa para cruzar o Madeira, mergulho na selva ferida, cravejada de fumaças e serrarias, gado, uma gente rara, aqui e ali. Mantimentos no carro sem descanso para não perder tempo.

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Infelizmente, carecia dizer – melhor sentar-se –, Antônio não pudera esperar por ela. Descansara da briga dura contra a maleita negra. Há pouco, por assim dizer. Na véspera. Aceitava água com açúcar?
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Ao transpor a ferrugem do portão, já disposta no costume de esperar nada, surgiu o oriental: uma desproporção de elegância para o calor da manhã. Saudou com a segurança de saber quem era ela, desculpou-se pelo desleixo do lugar, ofereceu toalete, mas não ficariam ali, que Antônio, seu sócio, deixara instrução para quando ela chegasse.
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Endereço conferido – número para a rua, letra para a casa – e era mesmo um comerciozinho de porta corrediça, pintado de sujo, enfeitado de jardim seco e espremido entre tantos iguais, beirando a avenida larga. Ali, descer mala sem ajuda e ficar só, sob o máximo sol de domingo. 
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Menos de uma hora em caminho de bom asfalto, sem ver floresta, mas pasto e terra nua, um mundo de roça de amendoim. O motorista, especulando contra o silêncio dela que enroscava nervoso no rosário. 
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O endereço amassado, ditado para o motorista: fresta aberta para espiar o mundo do marido. Senador Guiomard não era Rio Branco, minha senhora, mas vinte e cinco quilômetros pra lá. A estrada não se sabe. O preço é o dobro, adiantado.  
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Viagem de avião: primeira vez. Mais difícil não pensar em nada.
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Outra vez, o cunhado para as generosidades de emprestar o dinheiro para as passagens, a fundo perdido; Lucia para olhar os meninos, a preço de ouvir que cuidara bem dos seus, cuidaria dos dela, que não tinham ninguém.
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O tempo para lá da descrença, agravada com o silêncio prolongado. E então, o chamado tarde da noite, com voz inesperada. O endereço anotado em caneta verde, a mais próxima do telefonema desde Senador Guiomard, Acre: o marido, enfim, pedindo por ela. Mas, que fosse de imediato, que a malária negra não tinha paciências para esperar demais.
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Com o homem da companhia negociou na porta, ele já pronto para cortar a luz, depressa o menino implorar para o tio. A cesta básica ajudava sim, desde que a Lucia aceitasse ceder o que não precisava. Servia, claro que servia: uma barra aqui, uma pence ali. Cansada de ouvir que a roupa de trabalhar era sempre a mesma.
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O mais velho calado de todo; o pequeno sabia de nada, no mundinho dele; o do meio, esse sim, sentido, o Natal sem o pai. Falasse ao menos um pouquinho com esse, antes que a ligação caísse.
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Os dois homens chegaram à noite, um terceiro no portão. Que o safado não estava eles sabiam, mas havia de mandar alguma coisa pra dona, não mandava? Não saíam dali sem nada, ela que arranjasse, porque paciência dele esticava e esticava, mas rebentava e então acabou. Isso. Ela tinha criança, três, ele sabia também. Por isso, precisava pensar nelas. Pensar que podia acontecer alguma coisa com elas, inocentes, sem nada que ver com a safadeza do pai.
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O agiota balançando a cabeça. Não, coisa velha bastava ele. O sem vergonha pediu dinheiro, levou dinheiro. Com dinheiro ia ter que pagar. Tinha a garantia, a nota por formalidade, mas cobrar com papel levava tempo, lidar com advogado e juiz. Ele era homem prático, resolvia fácil, por bem ou por mal. Qual a preferência dela?
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Wilson, o generoso, casado com Lucia, mesquinhez. Everardo, o compreensivo, casado com Julieta, intransigência. Ninguém mais a quem recorrer.
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O salário do Estado mais os bordados e as costuras, esse quase nada que entrava a mais, para a casa e três crianças, no limite de água, luz, gás, roupa, calçado, remédio, comida. Mas, e essa gente querendo, exigindo na porta, na rua, pelas costas e na cara dela? E se uns perseguiam por receber, outros se escondiam de emprestar.
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Quando ela tem que acabar, a vida, a fé?
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A demora dele mais que dobrando. Depois, mais, ainda muito mais.
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Nem todo lugar do país assistia televisão de imagem clara, o som sem chiado. Nem toda linha boa, de falar nítido. A voz dele entrecortada, sumindo. Mas, de onde? Bastava saber que, de longe, que paredes e aparelhos não guardam segredo. Tudo indo conforme. Que demorasse mais, que fosse. Se ainda não tinha o que mandar, chegando compensava. Correio também era risco de caçar a remessa, mesmo de endereço inventado. Essa gente, quando quer, acha.
9
Antônio fechado em casa, pensando, fazendo conta. Melhor não ser visto naquelas ruas de incompreensão. Visita das irmãs e dos cunhados, já sem sermão ou conselho, para não cansar ninguém. Cervejas, de despedida, que agora ficava fora um tempo comprido. Segredo. Era esperar e ver. Muito do que se dizia erro na vida dele, os dedos apontados de todo canto, ele sabia que era a hora se preparando, “A hora”. Fazia questão: bebida, comida por conta dele. Pagassem agora que ele acertava tudo na volta e mais uma caixa de uísque de milionário, por conta dele.
8
Seria a derradeira viagem, para a aposentadoria em fartura. Não explicar detalhe, ela confiasse. Mas partia com projeto grande, líquido, sem risco maior que a viagem até o norte, terra de seringueiro e garimpo, onde gente feito ele ganhava o quanto queria. Outra certeza era de que ela aguentava o tranco com os meninos; o salário dela, as irmãs dele – a família –, o crédito que ele tinha. Não desse bola a agiota: esperassem e recebiam, como sempre. De volta, nunca mais pedir nada a ninguém, nem devolver desaforo de cobrar dívida na porta, as ofensas, o pouco caso de tantos com a dificuldade deles; pagar generoso cada “não” recebido, toda incompreensão, toda descrença.
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Mas o melhor ainda, abraçar o sonho: cair fora daquela roça, comprar casa na praia. Dinheiro dado e sobrado, ela ia ver. Para ela, nunca prometia nada, prometia? Pois que agora estava prometendo.
6
O mais novo dormindo, o do meio chorando, o mais velho satisfeito com a televisão ligada, mesmo que a imagem ruim, antena de arame. Não, não podia aumentar o volume, já sabe: os homens ficam sabendo, vêm, tomam da gente.
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Ela nem pensasse em desânimo. Ameaçasse a tristeza, a descrença e já o toque ritmado na porta, tarde da noite. Antônio, animado, mês e tanto fora, chegando com presentes para os meninos, vestido novo para ela. Depois, as brincadeiras de mágicas, as charadas, a caixinha de segredo que ninguém era capaz de abrir, senão ele. A mesma festa em voz baixa, a mesma alegria em segredo, ano após ano assim.
4
Para começar a vida, os móveis da casa, todos, pelo pai dela, com pena. Um emprego no banco não cai do céu, por isso o cunhado apresentando Antônio como homem de bem, trabalhador. Mas era – ao seu modo, que fosse. Só que não lhe bastava o respeito de gravata, o favor, os dias ordenados para a segurança. Isso ela sabia, desde aquele baile na Recreativa: um homem que caminhava como um general, falava como um poeta, dançava como um nobre, empilhava sobre a modesta imaginação dela seus sonhos de rei. Quem conseguisse emprestar-lhe atenção e não se sentir tocado, apaixonado pela grandeza do seu entusiasmo pela vida? Que não entregasse os livros que vendia, que negociasse os terrenos gravados, que prometesse pelo futuro o que o presente não podia cumprir. Ela sabia olhar com os olhos dele e enxergar o que ninguém era capaz.

3
Ele, sempre vestindo o sorriso enorme, dizendo a vida é investimento, é fé. Nunca uma espera tão longa que não se remediasse. Nunca um aperto tão forte que não afrouxasse, um respiro, uma chance nova de esperar outra vez, um pouco mais.
2
A luta era por ela, pelos filhos que iam crescer e saber que pai tinham: um que nunca rejeitou trabalho, nem teve medo de risco, pelo bem dos seus.
1
 O mais que fizesse, que provasse a todo mundo. Nunca o respeito de ninguém, nem que aparecesse de volta, trazendo o seu peso em ouro. 

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