(Virgínia Finzetto)
Naquele sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada
para o ensaio. Antes de atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também
aguardando fechar o semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena
ficava no início ou no final da rua. Resgatada repentinamente de suas
lembranças, ela espontaneamente abriu um sorriso e respondeu que estava indo
para lá. O rapaz apresentou-se como Sergio e comentou estar atrasado para
encontrar um amigo que o convidara a fazer o teste para substituir um dos atores
na peça Doce América, Latino América.
Ana imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois
conhecia Antônio Pedro, o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois
que prenderam Augusto Boal. Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época
em que Boal fora levado pela polícia e torturado na prisão, antes de seu
exílio. Por bem, preferiu se calar, pois não queria se expor àquele
desconhecido sobre esses assuntos.
Lado a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos
sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma
esperando por Sergio. Sem mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por
ali e aproveitaria para vê-la ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo
esse que não apareceu.
Ana logo pensou que havia caído na cantada de um
desconhecido, mas procurou se dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar
seu interesse. Ao término, foi ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir
dele, alegou que precisava se apressar na caminhada até a Avenida São João,
onde pegaria o ônibus. Ele sorriu e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na
Praça da República. Ela até que gostou dessa paquera.
Mas, durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a
falar abertamente sobre a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as
células que recrutavam jovens combativas e ousadas “como você” - disse-lhe olhando-a
firmemente nos olhos -,
para atuarem na resistência e coisa e tal.
Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin e Trotsky e completou
sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele
discurso tinha cara de ter sido planejado, decorado. Não demorou muito para ela
perceber a situação em que se metera. Sua intuição dizia para se fazer de
alienada.
Então, com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com
perguntas idiotas, evitando mostrar qualquer conhecimento profundo sobre
política. Seus pensamentos eram relâmpagos cruzando sua mente em todas as
direções. Desconfiada, concluiu: “Esse homem já está na minha mira e não é de
hoje... ele é um agente da polícia e está me investigando”. Gelou!
Embora não estivesse comprometida com nenhuma organização
clandestina, Ana era contra o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis
e ‘laranjas’ presos por engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude
urgente, dar um jeito de se livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas
reuniões que ele dizia conhecer. Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no
assédio.
Alguns passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma
Veraneio C14 cinza estacionada em local proibido, exatamente para onde eles
estavam se dirigindo.
“Ai, meu Jesus, por que eu fui
brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por favor, senhor meu Deus me
ajude...”, orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de
teatro que a vira saindo em companhia de um desconhecido...
“Pronto, é uma armadilha... Eles vão
me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me aconteceu... Pensa rápido,
pensa rápido, pensa rápido Ana...”.
Quando estavam quase em frente à Praça lotada, como era
comum nos finais de semana, Ana fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao
chão. Na queda, ralou o joelho, a mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito
verdadeiro de dor. Sérgio tentou acudi-la, mas ela se recusou a levantar.
Permaneceu sentada na calçada, gritando cada vez mais alto. Com isso, conseguiu
atrair a atenção das pessoas, que foram se agrupando ao seu redor. Fingindo uma
dor absurda, ela desatou a chorar, como se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava
para a periferia da roda que se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa
que era, Ana completou a cena com um ataque de nervos. Aos berros, foi
inventando um monte de mentiras: “eu quero o meu pai... ele é da polícia...
preciso que ele venha aqui com urgência...”.
As pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao
pronto-socorro, mas ela queria que fossem até o teatro chamar sua amiga e a
diretora da peça infantil na qual participava. Só sairia dali em companhia das
duas. Mal terminara de falar isso, ela se arrependeu, pois Sergio poderia
suspeitar das outras também. E aí, sim, ela chorou de verdade.
Naquele momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e
pediu que todos se afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque.
Disse que ficaria ali com ela, enquanto alguém correria até o teatro para
avisar o que acontecera.
Dando graças à providência divina pela aparição daquele
anjo, Ana disfarçadamente olhou ao redor.
Sergio já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá
estacionada.
Logo chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos
foram se dispersando.
Aliviada, Ana se levantou, limpou do rosto as últimas
lágrimas e suspirou...
Sua República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada,
desafiando o cinza-escuro da ditadura. A transgressora Praça da República dos
Meus Sonhos, do grande poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela
escolhera para declamar ali em silêncio:
“A estátua
de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina
a praça leva
pontes aplicadas no centro de seu corpo
e crianças
brincando na tarde de esterco
Praça da
República dos meus sonhos
onde tudo se
faz febre e pombas crucificadas
onde
beatificados vêm agitar as massas...”
Por muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse
episódio, sem chegar a uma conclusão sobre o repentino sumiço do rapaz: “Seria
ele um rato infiltrado ou um contato de verdade tentando me recrutar?”.
Jamais ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que
veio, Sergio desapareceu sem deixar rastro.
Era verão
de 1972.
Obrigada pela gentileza na divulgação do meu conto, Manalton. Grande abraço.
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