terça-feira, 24 de julho de 2018

CARTAS DO INTERIOR

Ontem Menalton Braff completou 80 anos e deixamos de publicar esta coluna para dar lugar às postagens comemorativas. A partir da semana que vem, CARTAS DO INTERIOR volta a sair nas segundas-feiras como de costume.

Atando as pontas da vida

À tarde, depois de um maravilhoso peixe ensopado, que segundo a garçonete era dali, do rio Uruguai, partimos para Carazinho, cerca de 210 quilômetros sentido norte.

Cansados de estrada? Nenhum pouco quando o que importa é o percurso tanto quanto o destino. Pouca serra no caminho, muito colina suave coberta do trigal nascente. Era dia, quando chegamos e logo na entrada da avenida nos hospedamos em um ótimo hotel. Curtir alguma coisa da cidade onde passei um bom tempo da adolescência, só no dia seguinte.

Seguindo a avenida onde estávamos, fomos na direção do centro e de uma das casas onde morou minha família no passado. E não foi difícil reconhecer a praça onde me ensaiava homem, tendo uma igreja bem alta nas costas e a prefeitura à frente.

A prefeitura de Carazinho merece um capítulo só dela, mas não é hoje, aqui no mato e com poucos recursos que vou me desincumbir da tarefa.


Estive perto de chorar ao me ver, uma criança de férias, subindo as escadarias do prédio da prefeitura, o mesmo desde aqueles tempos idos.

Tenho pra mim que aquelas visitas ao primeiro andar da prefeitura, onde ficava a biblioteca municipal, intensificaram meu gosto pela palavra escrita, que já se manifestava de forma tímida em cadernos de escola, em papéis avulsos, onde eu pudesse registrar alguma palavra.

Acontece que sentada atrás de uma escrivaninha, a bibliotecária, moça muito simpática, extremamente atenciosa, percebeu que aquele moleque meio tímido, que não sabia bem o que queria, precisava de orientação. E foi o que desde o primeiro dia ela fez.

Quantos livros por semana? Impossível saber. Só me lembro de que começamos pelo Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame, Os miseráveis, Trabalhadores do mar, e mais, muito mais, e outros, muitos outros que o tempo me apagou da memória. Quando eu chegava com um livro para devolver, depois de lido, minha bibliotecária já estava com outro para me indicar.

Ah, minha bibliotecária, de quantas jovens como você o Brasil precisa para se tornar um país de leitores? Ela não só me seduziu com o sorriso de quem faz aquilo de que gosta, mas também com seus conselhos, suas indicações, o encaminhamento de quem nem de longe poderia imaginar que um dia seria, além de leitor contumaz, um autor que nunca deixou de amar as palavras.

Fotografei a prefeitura e sua escadaria, fotografei a igreja que sempre me ficava às costas e descemos então duas ruas para ver a casa onde viajava pelo mundo. Claro, mais de cinquenta anos passados, o lugar era o mesmo, uma ladeira, mas minha adolescência com os livros estavam enterrados debaixo de um edifício com mais de dez andares.

O mundo se transforma, nós também nos transformamos, e, não fosse a memória, tudo restaria mais vazio.

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