(Virginia Finzetto)
Acabava com a caixa de lenços de papel, enxugando lágrimas
de tristeza e coriza ao mesmo tempo, enquanto tudo era abafado pelo barulho das
máquinas de escrever e dos ramais que não paravam de tocar. Naômi viajava em
seus pensamentos: “mais este plantão interminável com a
editora-nariz-chefe-empinado ... vontade de sumir, sair desta maldita gripe e
deste emprego... tô pelas tampas, não aguento mais esta merda...”. Deu uma
olhada na última pauta do dia: entrevistar o velho mestre Assad: “O senhor
aprecia mortadela?”. Pepinos destinados apenas à repórter ralé, matéria por
telefone, piada: a fanha entrevistando o outro que não ouvia. Mas fez, não sem
escapar das gargalhadas a cada pergunta que berrava sobre o embutido gourmet.
“Por hoje chega”,
pensou, “que não venha mais nada...”.
Toca o telefone e
todos fingem ignorar. Naômi vai atender quase se arrastando:
— Redação, boa
noite.
— Boa noite, meu
nome é Ney... queria passar uma nota sobre o Mautner para o caderno de
espetáculos...
Enquanto Naômi anotava tudo mecanicamente, pensava naquele
nome e na voz que não lhe era estranha. No final, arriscou:
— Ney... Ney Rama?
— Sim...
— Oi, sou Naômi
Medeiros...
Bastou ouvir o nome
para que ele se abrisse em surpresas. Entre as lembranças, um convite. Na
semana seguinte um café, e depois muitos outros.
O país atravessava
uma crise e ninguém acreditava mais no governo sequestrador de poupanças. Grana
escassa, salários aviltados. Sem um puto para se mudar de um pequeno apê de
quarto e sala que teve de voltar a dividir com os pais, Naômi não reclamava de
ter gastado suas economias naquela viagem. O lugar, portanto, não importava,
pois nada poderia ser mais blues do que sua rubra personalidade encarnada.
Perfeita draga a devorar tudo em suas entranhas em chamas. Gostava mesmo de
topar com almas torturadas, obcecadas e pessoas loucas, e também de atrair
homens que falassem seu idioma, o mesmo para traduzir a idiotice que é obedecer
a regras e sofrer de esperança.
Não, ela não fora talhada para isso. Desconfiava de tudo, desde que nascera. Sua alma só conseguia aportar em nostalgias de lugares por ela inventados, da lembrança de um paraíso perdido que sequer tinha certeza de sua existência, mas que já havia lido em livros de esoterismo, não desses que ficam largados na mesa da recepção de consultórios, todo rabiscado e faltando páginas. Não era dessa fonte que ela bebia. Sua busca abdicava de turismo, coisa de que ela passou longe no tempo em que esteve fora do país e do ar, mergulhada em autodescobertas, enquanto lambia feridas e colava cacos de sua vida destroçada pela dor dos lutos, de morte a descasamento.
Não, ela não fora talhada para isso. Desconfiava de tudo, desde que nascera. Sua alma só conseguia aportar em nostalgias de lugares por ela inventados, da lembrança de um paraíso perdido que sequer tinha certeza de sua existência, mas que já havia lido em livros de esoterismo, não desses que ficam largados na mesa da recepção de consultórios, todo rabiscado e faltando páginas. Não era dessa fonte que ela bebia. Sua busca abdicava de turismo, coisa de que ela passou longe no tempo em que esteve fora do país e do ar, mergulhada em autodescobertas, enquanto lambia feridas e colava cacos de sua vida destroçada pela dor dos lutos, de morte a descasamento.
Ney atualizara seu
passado com Naômi em tórridos encontros. “Como era bom poder escapar de vez em
quando para aquele refúgio face norte, tão quentinho no inverno polar de
Sampa.” Uma dádiva para quem já não sabia mais o que era intimidade amorosa
desde que havia voltado ao Brasil. Devolveram-lhe tesão, afeto e consolo com
juros, além de juras e de uma leitura da alma, dessas que não se consegue
proteger qualquer segredo de quem já lhe penetrara por inteiro. “Tipo de
encontro alquímico: nada se perde, tudo se solve”, definia para si mesma, sem
nenhuma certeza do que isso significava.
A cada três finais
de semana trabalhados, Naômi desfrutava um de descanso. Mas não naquela
fatídica data da morte da atriz. Convocaram-na para cobrir o acidente do bateau
mouche na baía da Guanabara. Para sua surpresa, já que nunca era chamada para
nada fora do jornal, muito menos da cidade. Lá se foram sua folga de final de ano
e o bota-fora do Ney.
Mas o destino
novamente colaborou, colocando ambos no mesmo voo. Para ela, ponte área, para
ele, conexão. Ela ficou no Rio, ele seguiu em outro avião. E quase trocaram as
mochilas, entre abraços emocionados e o beijo da derradeira despedida.
Dele, ela alugou a kit, herdou o LP dos Beatles, um livro de
poesia, o mezanino de madeira, marcas de amor no colchão e a imensa alegria de
voltar a ter seu cantinho. Dela, ele levou um coração envolto em mata-borrão,
que era para que o sangue da ruptura não deixasse pistas em sua repentina
decisão de retornar para a mulher e os filhos.
Naômi chegou tarde
da noite e foi direto para a redação, deixou a matéria sobre a mesa da chefa e
pediu as contas. Haveria de se manter de outra maneira, qualquer uma que
pudesse substituir tanta perda por qualquer ganho de melhor remuneração. Dali
em diante, estava valendo qualquer risco.
[conto, in revista Scenarium Plural, Me deixe a sós com meu
mundo blues, julho de 2017]
Obrigada, querido escritor. Sempre uma honra fazer parte do seu blog. Abraços!
ResponderExcluirQue belo texto Virginia..Obrigada por partilhar...
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