quinta-feira, 19 de julho de 2018

ORELHA

Esta coluna reúne apresentações de livros escritas por Menalton Braff, a maioria publicada como orelha.

Pelas ruas escuras da internet


Mais uma vez a Regina Baptista nos surpreende, agora com seu Fórum virtual. Tempos atrás tive a oportunidade de ler seu Cárcere privado, romance de personagem único, confinado em um quarto sem a menor brecha para o mundo exterior. Tudo acontece ali, dentro daquelas quatro paredes, numa narrativa kafkiana em que o prisioneiro não sabe nem por que está preso. Algum tempo mais tarde apareceu com seu Ato penitencial, romance em que um padre conhece as fogueiras do inferno quando se descobre sem vocação sacerdotal. Quase toda ação se passa na mente do padre, com
seus conflitos irremediáveis.

Hoje nos chega este Fórum virtual, com suas experiências narrativas que nos fazem lembrar o filósofo russo Mikhail Bahktin, quando afirma ser o romance o mais maleável dos gêneros, pois nele podem comparecer todos os demais. E é de vários gêneros que se tece o romance em pauta.

O início da história se dá com uma troca de mensagens entre dois primos adultos, isto é, sem perceber, vamos penetrando num mundo em que apenas as palavras existem. Os primos não são personagens presentes, eles não se movimentam, não mostram o rosto. É um diálogo de corpos
ausentes, inaugurando, no romance, aquilo que Norman Friedman, em seu estudo sobre o ponto de vista na narrativa, chama de modo dramático.

Mas neste caso, o modo dramático não tem palco, não tem atores em ação, a não ser por suas palavras, suas opiniões, que vão sendo expressas à medida que vai aumentando o número de mensagens trocadas.

A uma alusão do primo, surge a necessidade de um novo texto, mas então do gênero jornalístico, trabalho antigo da prima, jornalista de uma revista de circulação nacional. Com isso, percebemos uma inesperada mudança de rumo da narrativa, e descobrimos que a troca de mensagens entre os primos funciona assim como uma espécie de moldura para a verdadeira e trágica história de um suicida, que será o assunto principal do romance.

A partir desse ponto, e por quase toda a extensão da obra, vão sendo mostradas discussões, às vezes líricas, em alguns momentos bastante tensas e até brutais que se dão entre as dezenas de internautas, cujas vozes cruzam os céus do planeta. São personagens in absentia, de quem nada mais sabemos além de suas palavras. Tais personagens, numa espécie de frenesi característico de nossos tempos, atiram-se a várias pesquisas, em diversos fóruns de diversas épocas, e que vão sendo feitas sobre as
motivações do suicídio, quais as relações que o ato trágico pode ter tido com a internet, em que sentido fóruns virtuais de suicídio assistido podem ter contribuído para a consecução do ato criminoso, quais os possíveis culpados, se os há; são internautas, os pais, o psicanalista?

Eis em sua mais clara manifestação um romance de pensamento. Depois do modo dramático, do estilo jornalístico, há uma pausa nas reflexões e aparecem alguns poemas escritos por uma das personagens da história. Então prossegue o modo dramático, com a troca de mensagens postadas em alguns fóruns de fins diversos.

A Regina Baptista nos surpreende pelo coloquialismo adequado ao desenvolvimento da história que se propôs nos contar, mas também pela segurança com que usa o vocabulário próprio deste universo. As dezenas de participantes na discussão sobre vida e morte, que é o móvel de todas as reflexões que informam a história, demonstram ser internautas experientes, principalmente pelo modo como conduzem seus diálogos.

A autora competente acaba de criar um narrador à altura de sua competência.

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