segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas inéditas de Menalton Braff.

Ideologia e Utopia


De maneira enganada (talvez enganosa, não sei bem) muita gente anda dizendo por aí que não existe mais ideologia. Quando se mexe com esses assuntos mais complexos, é sempre bom consultar quem sabe o que diz, caso contrário fica-se no achômetro, esse vício tão brasileiro quanto funesto.

Convencido disso é que fui consultar o "pai da matéria", o sociólogo e filósofo Karl Mannheim, em cujo livro "Ideologia e Utopia" pode-se encontrar a solução da divergência.

Mannheim, em síntese, afirma que o pensamento ideológico é aquele produzido por elites sociais que, tão empenhadas em fazer valer seus privilégios, não conseguem ver fatos reais que poderiam solapar seus poderes. Ou seja, ideológico é o pensamento que sente ojeriza por mudança. De outro lado, pensamento utópico é aquele formulado por grupos oprimidos que, tão interessados na destruição de um status quo, não conseguem ver na sociedade a não ser o que os oprime. Então pode-se dizer que o pensamento utópico consiste no desejo de transformação, de negação das condições reinantes.

E você acha que ninguém mais resiste às transformações sociais, que somos todos revolucionários, agora? Muita gente, ao dizer que ideologia não existe mais, afirma exatamente isso.


O assunto me ocorreu porque ontem senti aquela dorzinha chata de um espinho muito antigo, que nem sempre se manifesta mas continua lá sempre, latente, pronto para atacar. "Lá", antigamente, chamávamos de subconsciente, e que há muitos anos alguém me disse que já não se usava mais. Não dou palpite, que do Freud conheço pouco mais que o nome. Mas voltemos ao espinho. Foi-me sempre de um certo desconforto constatar que a sociedade, para manter-se em padrões aceitáveis de convivência, estrutura-se num sistema punitivo, ou seja, parte do princípio de que o homem tende naturalmente para o mal e que só a punição o mantém distante do delito. E essa me parece a razão por que se comete tanto crime ainda, ou seja, na pressuposição de que se pode ocultar o ato criminoso e com isso fugir da punição. Cria-se um círculo vicioso entre crime e castigo, porque o castigo amedronta e incita ao mesmo tempo. O castigo não pode resultar em desejo de vingança do castigado?

Pareceu-me, a vida toda, que um sistema de premiação pelos atos, vamos dizer, virtuosos, poderia ser muito mais eficiente. É muito mais desejável o prêmio do que indesejável o castigo. E o prêmio também incita, mas para a prática do bem.

Alguém, contudo, poderia objetar: Mas isso é impossível, a humanidade foi sempre assim, não há como mudar. Isso não passa de uma utopia.

Concordo. É uma utopia. Assim como tantas utopias que se tornaram realidade. O homem, em outros tempos, já andou nu e não anda mais; já morou em cavernas e não mora mais; já adorou o trovão e não adora mais (acho que não). Nossos antepassados, dizem os antropólogos, fornicavam a torto e a direito, sem a menor noção de parentesco. Ou seja, nem tudo que não era deve continuar não sendo.

Para terminar com um toquezinho literário, me lembro do Fernando Pessoa de Mensagem: " Sem a loucura que é o homem/Mais que a besta sadia,/Cadáver adiado que procria?".

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