sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

CONTOS CORRENTES

DEDICATÓRIA

 (Patrícia Cicarelli)

Havia perdido a esperança de encontrar aquele livro. Quando o proprietário do sebo me respondeu com a notícia de ter encontrado o título que procurava há tanto, não hesitei em sair da clausura que me impus para concluir meu novo romance, intimado que estava pela editora a entregá-lo até a entrada do inverno.Minha estada na casa de Joe fora providencial.

Havíamos sido colegas de seminário, quando jovens. Ele, mais corajoso, abriu logo mão de um futuro sacerdócio, assumindo sua verdadeira vocação: rabos de saia, absinto e poesia. Tinha como sustentar os vícios, que ele dizia ser a missão de proporcionar felicidade às mulheres e garantir a preservação do nobre ofício de poetar. O absinto? bem, ele precisava de um propulsor para tanta alegria e criação. Vivia da herança da avó paterna.

Eu só me livrei do seminário um ano depois e amarguei uma certa culpa pelo alívio que sentia em abandonar a vocação. Meu pai teve morte súbita. Arrimo de família, então, retornei à cidade natal
para cuidar da família. Além de minha mãe, restara minha irmã que logo se casou e foi para a África do Sul, onde seu marido realizava negócios de exportação.

Mais dois anos se passaram e minha mãe resolveu deixar-me completamente órfão. Lecionava espanhol, italiano, história, filosofia e qualquer outra coisa que pudesse me render o suficiente para
pagar o aluguel do pequeno quarto de hotel em que vivia, comprar, meus livros e escrever mais um livro para juntar-se aos outros inéditos que aguardavam a boa vontade dos editores.

Tudo aconteceu rapidamente. Eram dias de verão. Um editor telefonou-me, fim de tarde. Modorrenta. Deu-me parte do verão e o outono para eu escrever um romance que deveria contar um amor impossível. Algo como paixão por uma mulher comprometida ou por alguma que tivesse de partir ou ainda por uma mulher misteriosa.

Meu quarto de hotel era insuportavelmente quente. O sol batia chapado durante toda a tarde. À noite, os insetos vingavam-se. Como se eu fora o único culpado da cidade ter tomada o espaço destinado a eles. Meus vizinhos de corredor eram rotativos, divertidos, porém barulhentos. As noites eram imprevisíveis e os dias, precários.

Joe morava numa cidade pequena, de pouca efervescência econômica. Havia uma fundição de sinos, uma fábrica de vidros e uma olaria nos arrabaldes. A vida urbana era lenta, com um tempo diferente que não passa apenas vai ficando amarelado e empoeirado como um livro esquecido, de páginas redadas a traças.

Sua casa guardava certa distância do centro da cidade. Ruas pesadas, casas silenciosas, pessoas desgostosas de passado eterno. Partindo do largo, deixando certo comércio às costas, seguia-se um passeio em desnível. Meio tombado às vezes de um lado, às vezes do outro. Era preciso andar sempre em frente como se estivesse partindo até avistar o telhado da olaria. Frontes de tijolos, uns burros desanimados e magros e saia-se da cidade.

O calçamento continuava. Circundava o morro. Tudo subia e descia, até cruzar um vilarejo sem nome. O caminho que ia para a casa do Joe, assentado em pedras, era luxo de um rico proprietário, de outrora. O homem, sabia-se culto, dedicou-se às letras. A pavimentação permitia sua charrete chegar com elegância à propriedade. O distanciar do tempo a fez restar abandonada, espólio de sobrinhos bisnetos, desconhecidos daquele que que tudo construía.

Entrava na cidade de carona. Um médico, morador distinguido pela generosidade do ofício e pelo Ford que facilitava as duras andanças. Era fim de tarde. Fomos informados que faltava luz, a energia elétrica que dava ares de prosperidade, embora mais faltasse do que iluminasse. Na praça, as pessoas aproveitavam o que ainda restava da claridade do dia e levantavam as suspeitas para a falta de luz. Recordavam dos sete dias de escuridão da primavera. Pelo menos era verão. Consegui comprar um maço de velas de sebo. A disputa também era grande pelas marquinhas, azeite e latas de querosene. Qualquer artefato que propiciasse luz.

O caminho para a casa de Joe tornava-se íngreme. A noite ficava mais forte naquele relevo. Não fosse o calçamento a me guiar, talvez me perdesse. Teria dificuldade de chegar à casa cedida pelo meu amigo. Poderia, finalmente, escrever o livro. Janela com brisa. Eu, no conforto e meu companheiro de juventude perseguindo um novo amor. Moça trapezista. O circo zarpara há alguns dias. Seria uma turnê de quatro ou cinco meses pelo vale ou mais. Joe não se importou.

A casa caiu-me de presente. Minhas economias permitiram a reclusão necessária. Finalmente, poderia me dedicar somente ao livro. Em algum momento, na minha caminhada, percebi que não estava sozinho. Alguém me acompanhava. E a certa distância, assim se mantinha. Não tinha tostões nem aparência que atraísse vilões. Temia pelo livro e temia por falta de coragem, estranheza.

Os ecos dos passos do meu acompanhante perdiam-se no escuro. Não conseguia perceber se estava à minha frente, ao meu lado, ou se a me perseguir. Soltou sua voz decidida, cerimoniosa e linguajar singular. Perguntou-me se faltava muito para eu terminar de escrever o livro. Sem falar do arrepio que senti, o susto conferiu mais volume à minha cabeleira rala, minha voz teve de percorrer maior distância do que eu teria até chegar à casa para poder sair da minha boca. Fui afirmativo. Monossilábico. E mais pareci grunhir. Não identificava a silhueta do meu acompanhante. Mas ele estava lá, eu sentia. Ele falava! Eu ouvia seus passos.

– Esse livro que o senhor comprou hoje vai lhe ajudar na solução da trama que armou para sua história.

Minhas pernas bambearam. Continuou a me acompanhar, confessando-me também ter sido escritor. Disse-me ter publicado apenas o último livro que escreveu muito tempo atrás. – Ramo difícil, exclamou. Não escrevia mais. Os livros anteriores ficaram esquecidos entre papeladas velhas, inúteis, numa papeleira.

Faltava uma boa distância para chegar na casa e meu temor aumentava com aquele homem que eu não via e que me perseguia. Ele continuou a conversa, quase um monólogo, dizendo que costumava andar muito naquela estrada quando não havia luz elétrica. Com o tempo, passou a apreciar as caminhadas no escuro, guiado apenas pelo caminho das pedras. Falou-me de quando viveu naquele lugar, do quanto era propício à escrita. Pelo cenário, pelo silêncio. Ia fazendo relatos do passado, descrevia personagens que habitavam seus livros impublicados.

Passei a não estranhar o fato de não enxergar meu companheiro de caminhada. Afinal, era envolvente e me orientava na escrita como se soubesse das dificuldades que encontrava na trama. Desenhou-me comportamento de personagens, mudanças temporais e outras soluções de narrativas que poderiam me acrescentar. Já próximos da minha temporária casa, ele disse que pegaria um atalho. Desejou-me sorte e recomendou que cuidasse bem do livro que acabara de adquirir. Não deu explicações. Como saberia que tinha um livro debaixo do braço e que fora comprado nesse dia? Eu nem queria saber.

Desapareceu da mesma forma que surgiu. Os ecos de seus passos nas pedras confundiram meus ouvidos. O arrepio havia passado sem que me desse conta. Ao acender a primeira vela ao abrigo do meu novo lar, abri o livro e por algum motivo não me espantei com a dedicatória: “Meu caro jovem escritor, espero que meu romance, único que publiquei, lhe sirva de fonte para suas tramas. Cuide bem dele, é o último exemplar que restou.” 

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