sexta-feira, 15 de março de 2019

CONTOS CORRRENTES

Eles já sabiam disso

(Luiz Eduardo Costa*)


Em Monte Santo, sertão baiano,  um padre velhinho, indiferente aos ventos renovadores da Igreja em plena fase de agiornamento, numa quarta feira após o carnaval, fazendo a imposição ou aposição das cinzas nos rostos suarentos dos fiéis, já abafados pelo calor que em março ainda madruga, percorrendo as vastidões solarengas do Raso da Catarina, repetia, o encanecido sacerdote, a cada um daqueles que levemente lambuzava: "Memento hominis pulvere  es, et  in pulverem reverteris. "

Sem atentar para a grave advertência sobre a precariedade da vida, sempre à beira da finitude, os fiéis se retiravam alheios à admoestação, mais ainda grave e solene pela escolha do latinório feita pelo padre, apegado, ainda, ao estilo de uma liturgia que impressionava mais pela formalidade majestática do que pela fluência convincente da palavra. 

Mas os que viviam naquela época em Monte Santo tinham, ainda, a existência impregnada pela religiosidade que envolve a cidade. Na imponente serra pelo lado do poente, desenha- se, sinuosa e sempre ascendente, ao longo de seis quilômetros, a estrada de pedra talhada reeditando os passos da Paixão de Cristo.Vai até o ponto mais alto, onde está a capela, repositório de uma infinidade de ex-votos que penitentes com os pés sangrando, ou joelhos esfolados carregam em transe místico. Por ali, em anos imprecisos das décadas finais do século dezenove esteve Antônio Conselheiro. Congregava gente para a sua empreitada de devoção e crença .  

Construiu aquela obra acreditando na fé que remove montanhas e que o fez enfrentar um exército. Aquela gente de Monte Santo nem precisaria entender o latim do padre; a própria existência que leva, o clima, o meio , a história, as vicissitudes, fazem com que o retorno ao pó seja visto com resignação decorrente da fé, da sabedoria, ou de um conformismo sem medo.

O povo de Monte Santo adquiriu uma espécie de atávica intimidade com a volta ao pó, mesmo sem sequer ter a convicção do finito-infinito, aquela condição da totalidade universal que nos faz  "pó de estrelas".  Isso aconteceu desde que os seus antepassados assistiram à passagem das tropas com  fardas coloridas, fuzis, espadas e canhões rebrilhantes, ali acantonadas antes do estirão longo até  "a cidadela de palha e barro", a Canudos.  Depois, viram o retorno, a face ensanguentada da morte recoberta pelo pó das estradas.
Hoje, o padre diz em português mesmo :  "Lembra-te homem que és pó e ao pó reverterás ."
E todos, bem antes, quando ouviam sem entenderem o latim, já sabiam disso . 


Luiz Eduardo Costa é jornalista e autor do blog Luiz Eduardo Costa


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