sexta-feira, 19 de abril de 2019

CONTOS CORRENTES

O Pescoço*

(Mário Matos)


O Metro transbordava. Hora de ponta matinal numa Primavera solarenga e convidativa a nada fazer. Adolescentes e universitários a caminho das aulas. Raparigas de cabelos molhados, misturando colónias que impregnavam o ar de odores suaves. Mochilas às costas, ténis de moda ou skechers pois as chuvas já a terminar e a temperatura amena convidavam a pôr de lado as habituais botas e botins de Inverno. De calças compridas, ganga, linho ou outros tecidos. As habituais gangas rasgadas em cortes mais ou menos longos, nos joelhos e noutras partes, moda a que não poucos adultos têm aderido nessa extraordinária vontade pós-moderna da fantasia do eternamente jovem. Eles, também de mochilas às costas ou displicentemente dependuradas de um lado, predominando as mesmas gangas de rasgões, quando não os fundilhos ao nível dos joelhos e os boxers à mostra, nessa moda vinda lá da América negra, cuja origem a maior parte dos seus cultores, a começar pelos jovens de ascendência africana dos “bairros”, desconhecem: é a forma de vestir, associada a um andar característico dos violados, sodomizados, nas prisões americanas. Jovens africanos, na sua maioria de origem cabo-verdiana, à mistura com colegas brancos, ambos alternando crioulo e português, num à-vontade de quem domina os dois códigos.

Funcionários ou empregados de empresas no rigor dos fatos e gravatas com sacos de pele ou de imitação a tiracolo, ar compenetrado; senhoras negras, fazendo parte do exército da grande “indústria de limpeza” que as explora até o tutano, de olhos cerrados a dormitar ou então numa fala fluente acompanhada de gestos, a partilhar angústias, esperanças, descrição das tarefas domésticas, com a colega do lado, na sua maioria cabo-verdianas e guineenses, que se comunicavam em crioulo. Outras, portuguesas de raiz, com a bolsa habitual das senhoras mais a lancheira ou um saco com o almoço, pois, há que poupar. O jantar em casa será a refeição forte. Na sua maioria, jovens e menos jovens, com os telemóveis activos no FB ou jogando ou teclando rápida e furiosamente com os polegares das duas mãos, ao mesmo tempo que iam dialogando ou simulando dialogar com o colega do lado.



Uma babel o Metro de Lisboa em hora de ponta! Sotaques de Português para todos os gostos: nativo, angolano, cabo-verdiano, brasileiro, são-tomense, mais raro o moçambicano e o timorense, etc., crioulo de Cabo Verde, crioulo da Guiné-Bissau, ucraniano, russo que parecem a mesma língua para ouvidos profanos, mandarim, hindu e urdu, entre outros. Lisboa do século XXI metamorfoseou-se numa amostra do Mundo e o Metro é a uma das suas vitrinas.

Era impossível, nesse emaranhado de corpos, não se sentir como um enlatado. As variações de velocidade do comboio resultavam numa série de “desculpe” e “perdão” pelo encostar mais forte quando não quase que um inadvertido empurrão.

Tinha conseguido um lugar considerado estratégico, num dos cantos junto à porta cega da carruagem. Mais precisamente, encontrava-se encostado quase que espremido no espaldar do assento lateral a essa porta do lado direito de quem entrava na carruagem.

Inicialmente passou-lhe despercebido. Mas, fruto de uma redução brusca da velocidade do comboio, espalmou-se ainda mais no espaldar e notou aquele pescoço. Ele era doido por pescoços elegantes. Confessava na roda de amigos, com um olhar sonhador que tinha um fétiche para com pescoços. Começava logo a discorrer sobre os pescoços de gazela das africanas, sobretudo das etnias Fula, Mandinga e Achanti, levando os companheiros a perguntarem-lhe em tom jocoso desde quando ele tivera oportunidade de apreciar beldades dessas etnias em Lisboa. Não se dava por achado e nem amuava. Continuava a sua digressão pelos famosos colos e pescoços, aterrando nos das cingalesas e hindus, sobretudo das bailarinas que, com uma elegância difícil de imitar, oscilavam a cabeça para a direita e para a esquerda dando ao mesmo tempo a sensação de estática, pela fixidez do pescoço.

Ora, à frente tinha um exemplar de rara beleza e elegância. Tez negra de breu, com um brilho de elasticidade conferida pela juventude da pele. Absolutamente lisa, ligeiramente mais largo na base a ascender para a cabeça, diluindo-se num penteado curto, típico das mulheres negras que assumem a sua identidade e não disfarçam o que o Ocidente apelida de carapinha, antes a ostentando com orgulho da raça.

Sentia-se atraído por esse belo pescoço como um passarinho que não conseguia furtar-se ao olhar hipnotizador de uma serpente. O mundo parou à sua volta. Existia ele e o pescoço, imaginando já a face os olhos ligeiramente amendoados como os dos bustos esculpidos pelos artesãos Iorubas, os lábios proeminentes, sedutores em promessas de lúbricos beijos, harmonizados com o todo da face.

De repente, a rotina dos dias despertou nele o alerta para não passar da estação onde devia descer. Alçou os olhos para o mostrador que indicava com antecipação a próxima estação e era justamente a do seu destino. Não resistiu, o pensamento num torvelinho, o coração acelerado, o sangue a subir-lhe pela cara, afogueado e quase a arfar de tanta adrenalina, com um desejo que quase lhe provocava um tesão ali mesmo à vista de todos, aflorou um beijo no pescoço dos seus mil desejos e fantasias, e foi pedindo licença e empurrando para sair, ante o olhar atónito de uns e os resmungos de outros.

Meio corpo fora da carruagem volta-se ligeiramente para ver a face da dona daquele pescoço irresistível e, horrorizado, deu de caras com um rosto glabro de um rapaz, ostentando um esgar misto de assombro e de raiva.


*Mário Matos nasceu na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, em abril de 1954. É sociólogo pós-graduado em Ciências Políticas e Relações Internacionais, Ramo Globalização e
Ambiente, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi Deputado, Líder do Grupo Parlamentar do PAICV , 1º Vice-presidente da Assembleia Nacional
de Cabo Verde e Ministro da Agricultura Ambiente e Pescas. Colabora com o jornal A Semana desde sua fundação. Publicou poemas em português e em língua cabo-verdiana, e artigos de recuperação de memória da cidade do Mindelo no jornal Artiletra. Tem no prelo um livro de poemas em língua cabo-verdiana e em preparação o segundo livro de contos e um romance.

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