(Hugo Rodrigues)
Aquilo não era um casamento.
Lembrava mais um enterro. Na capela da família, Dilza, num vestido
branco vaporoso, longa cauda de cassa francesa, ramo de laranjeiras nas
pequeninas e delicadas mãos,
chorava convulsivamente, enquanto apoiada pelo noivo, respondia sim ao
padre, com todos os parentes também chorando. Choravam não de emoção pelo
matrimônio, mas de saudade pela morte súbita do grande ausente daquela festa,
que era o Dr. Madeira, famoso endocrinologista, fulminado por um enfarte no seu
consultório no centro da cidade, dez dias antes das núpcias da filha única. Foi
Dr. Madeira quem preparou pessoalmente toda aquela festa nos mínimos
detalhes. Tudo passou-se de forma tão rápida, que, na cabecinha da noiva, turbilhonava um
estranho mundo de estranhas sensações.
Via-se dançando no Baiano de Tênis aos 25 anos, rodopiando lentamente ao som de
um bolero de Agustin Lara, recostada a cabeça no peito daquele jovem alto,
elegante e moreno, que encontrara na festa e por quem se apaixonara à primeira
vista. Saía dos braços do namorado e já estava no colo do pai, que lhe afagava
os cabelos e com voz sussurrante lhe contava estórias de anjos, arcanjos e
querubins. Seu pai lhe esperava para dançar a primeira valsa dos quinze anos no
pé da imensa escada de tapetes vermelhos, fofos e felpudos, que
lhe encobriam os pequeninos pés em sandálias de pelúcia branca, vestido rosa, marcando sua entrada triunfal na sociedade, em festa na bela mansão da família. As tias lhe diziam que o rapaz - "muito bonito, por sinal, parece até artista de cinema."- não era conveniente para ela porque era pobre. Um pé rapado. Empregadinho como caixeiro numa livraria. Ainda sentada no colo do pai, ouvia-o perguntando: "você o ama, minha filha?” “ Sim pai, eu o amo. Ele é lindo!" O pai respondia "a mim o que importa é que ele lhe faça feliz. Ele é honesto, trabalhador e isto para mim basta. Vou preparar seu casamento." "Oh! papai, você é o homem mais maravilhoso do mundo!". "Pare Madeira, você está trabalhando demais!". Sua mãe agora entrava em cena. Alma gêmea de seu pai, eram como dois pombos arrulhantes. Onde quer que estivessem sentados juntos, mesmo após 26 anos de casados, ficavam de mãos dadas, quando ele não estava alisando os cabelos dela, onde o louro resistia à neve dos anos vividos. "Não posso parar, querida, tenho que preparar o apartamento de Dilza. O casamento está tão próximo e não posso deixar de acompanhar a reforma da casa. Quero que eles tenham o maior conforto. Vou transformar o ex-futuro consultório aqui de casa no apartamento ideal e eles residirão aqui conosco. Quando comprei este terreno em desnível e construí a casa dando para duas ruas, aqui do Morro dos Capitães, tinha em mente tudo isto. Residirei na parte elevada, na intermediária coloco minha filha quando casar, e na parte inferior ficarão os empregados, garagem, os animais e um quarto especial para meus livros e laboratório. Não vou parar agora . Hoje mesmo está chegando o pintor Salvador Daqui para aproveitar um pano de parede branca do living em L para um mural. Vi o "lay-out". Um tronco de árvore centenária começa no assoalho, bem no canto da parede e pára bruscamente a 0,50m de altura. Dá a impressão que morreu, mas lateralmente sai um único galho, cheio de flores, que vai até a sala de jantar, contornando em L e ali as flores e folhas estão prestes a cair, É uma árvore esquisita, mas as cores são tão vivas, berrantes e as flores de um vermelho tão encarnado que parecem escorrer sangue. Coisa de artista famoso por suas excentricidades."
lhe encobriam os pequeninos pés em sandálias de pelúcia branca, vestido rosa, marcando sua entrada triunfal na sociedade, em festa na bela mansão da família. As tias lhe diziam que o rapaz - "muito bonito, por sinal, parece até artista de cinema."- não era conveniente para ela porque era pobre. Um pé rapado. Empregadinho como caixeiro numa livraria. Ainda sentada no colo do pai, ouvia-o perguntando: "você o ama, minha filha?” “ Sim pai, eu o amo. Ele é lindo!" O pai respondia "a mim o que importa é que ele lhe faça feliz. Ele é honesto, trabalhador e isto para mim basta. Vou preparar seu casamento." "Oh! papai, você é o homem mais maravilhoso do mundo!". "Pare Madeira, você está trabalhando demais!". Sua mãe agora entrava em cena. Alma gêmea de seu pai, eram como dois pombos arrulhantes. Onde quer que estivessem sentados juntos, mesmo após 26 anos de casados, ficavam de mãos dadas, quando ele não estava alisando os cabelos dela, onde o louro resistia à neve dos anos vividos. "Não posso parar, querida, tenho que preparar o apartamento de Dilza. O casamento está tão próximo e não posso deixar de acompanhar a reforma da casa. Quero que eles tenham o maior conforto. Vou transformar o ex-futuro consultório aqui de casa no apartamento ideal e eles residirão aqui conosco. Quando comprei este terreno em desnível e construí a casa dando para duas ruas, aqui do Morro dos Capitães, tinha em mente tudo isto. Residirei na parte elevada, na intermediária coloco minha filha quando casar, e na parte inferior ficarão os empregados, garagem, os animais e um quarto especial para meus livros e laboratório. Não vou parar agora . Hoje mesmo está chegando o pintor Salvador Daqui para aproveitar um pano de parede branca do living em L para um mural. Vi o "lay-out". Um tronco de árvore centenária começa no assoalho, bem no canto da parede e pára bruscamente a 0,50m de altura. Dá a impressão que morreu, mas lateralmente sai um único galho, cheio de flores, que vai até a sala de jantar, contornando em L e ali as flores e folhas estão prestes a cair, É uma árvore esquisita, mas as cores são tão vivas, berrantes e as flores de um vermelho tão encarnado que parecem escorrer sangue. Coisa de artista famoso por suas excentricidades."
* * *
- Venha prá
cama, querida.
- Já vou,
papai.
- Não sou
seu pai, querida. Sou seu marido, lembra-se? Foi ainda há pouco o nosso
casamento.
- Não faça
isto! Vista-se! Que coisa horrível!
- Deixe de
tolice, querida. Você está ainda sob o impacto emocional da morte de seu pai,
mas nós precisamos viver e isto faz parte da vida. Venha logo.
Um grito de
dor rompeu a madrugada, partiu do quarto, ecoou no corredor, passou ao living,
subiu na árvore, escorreu pelo galho, dobrou à sala de jantar e no fim do galho
derrubou a primeira flor, manchando o alvo tapete de vermelho.
*
* *
- Não podemos
continuar desta forma, sem filhos, vivendo nestes dez anos apenas de fofocas no
society. Vamos aos Estados Unidos para um tratamento numa daquelas clínicas de
inseminação artificial. Você não pode se incomodar com isto. Sabemos que você é
estéril e a Clínica tem sêmen de homens escolhidos em seleção rigorosa, de QI
acima da média normal. Nada de adotar criança. Quero que o filho seja realmente
meu, gerado por mim. Sempre foi o desejo de meu pai. O sangue dos Madeiras não
pode parar de fluir e crescer.
*
* *
O imenso apartamento especial da Maternidade Climério de
Oliveira tornou-se pequeno para comportar todos os parentes e amigos, que
queriam ver os gêmeos. Um menino e uma menina.
- É a cara do pai!
- Parece mais com o avô!
- Não tem nada da mãe, nem da avó!
- São uns mimos!
- Deixe-me segurá-los.
- Cuidado!
- Segure-os assim. Vou bater a chapa.
- Olhem o passarinho.
Bilú-bilú.
* * *
- Veja tia, aqui eles tinham 5 anos e já nadavam como peixes
na piscina aqui de casa. A mãe mostrava, orgulhosa, o álbum à velha tia, irmã
de seu pai, que viera do Rio passar uma temporada, aproveitando a ocasião para
exames e tratamentos no Instituto de Geriatria.
Septuagenária, abatida pela idade e pelas doenças
imaginárias, carregada de auto-piedade, a tia encontrou forças para uma breve
observação de algo que vislumbrou no álbum.
- Que cachorro lindo nas mãos das crianças!
- É o cocker-spaniel
importado, filho de campeão inglês, que meu marido deu aos meninos. Custou uma
pequena fortuna, mas algum malvado deve tê-lo morto. Apareceu com a cabeça
separada do corpo, jogado no jardim.
- Que coisa chocante!
- Esta aqui é bem recente. - Dilza apontava uma foto em que
os garotos, com dez anos, vestidos de pierrot e colombina, participaram do
baile infantil carnavalesco do Yacht Club.
- Estou cansada, filha, da vida e de tudo. Como diz o
Salmista, depois dos setenta tudo é enfado e canseira. Só uma boa morte me
consolaria. O mal nunca se rende sem feroz luta e resistência e eu não tenho
mais força para a luta. Aguardo apenas a morte.
- Não fale assim, tia, na vista das crianças.
- Venham cá, meus
queridos. Deixe-me acariciá-los. Vocês são lindos e tão puros e eu tão velha e
feia! Vocês aos cinco anos já nadavam e eu aos setenta só vi água no chuveiro
na hora do banho!
Os garotos faziam funcionar um trem-elétrico, sentados no
chão da sala, absolutamente indiferentes à conversa da tia-avó e por isso não
atenderam ao chamado.
- Quando quiser descansar, tia, seu quarto é aquele que dá
para o jardim e como as noites de verão são quentes, a senhora pode passear no
jardim ou sentar-se próxima à piscina, onde corre sempre uma aragem gostosa que
vem do mar. Vai-lhe fazer muito bem.
* * *
Repórteres tentavam,
sem sucesso, entrar na mansão, cuja entrada estava barrada pelos fortes
empregados da casa - jardineiro, motorista e mordomo - a fim de saberem os
detalhes do acidente, que vitimou a velha dama colunável, afogada na piscina.
- Use seu prestígio, primo, e tire todo esse pessoal daqui.
Dilza, nervosa, pedia ao líder do governo na Câmara Federal, eleito por larga
margem de votos dos eleitores de Viçosa da Mata, município por onde se estendia
o feudo dos Madeiras.
- Deixe comigo, prima. Estou aqui para isso. A família
traumatizada com o acidente e essa súcia de curiosos e insolentes repórteres em
busca de sensacionalismo barato! Ainda por cima, a polícia quer conhecer os
detalhes. Ora, vejam só! A cidade vive em pânico com os assaltos, numa
insegurança total, que eu não me espantaria se titia tivesse sido vítima de
marginais.
- Mas não roubaram nada, primo! Já examinei tudo. Notei,
apenas,um fato curioso! A pintura da sala amanheceu como se a tinta da árvore
tivesse escorrido!
* * *
Aquele inverno fora rigoroso e as chuvas caídas no período transtornaram
a vida da cidade. Encostas deslizando, soterrando casebres e seus infelizes
moradores. Ruas alagadas, impedindo o tráfego normal de veículos. Riachos
transformando-se em caudalosos rios, carregando, no seu caminho para o mar, as
cabeceiras dos pontilhões nas avenidas de vale, interditando bairros e exigindo
trabalho redobrado do pessoal da Prefeitura, exaurindo o já combalido cofre do
Município. Decretou-se calamidade pública.
- Arranje um operário, querido, para consertar aquela
infiltração no quarto das crianças. Alguma telha deve ter corrido e a molhação
mofou a parede.
- O papel está soltando. Veja!
Dilza conversava com o marido, que foi até o quarto dos
filhos para beijá-los, como de hábito fazia, antes de sair para o escritório da
sua firma.
- Vai ser um pouco difícil. Este lado da casa é o mais alto.
Mais seguro seria usar-se andaimes, mas é um serviço tão tolo que o Silva,
quebra-galho lá da firma, dará um jeito.
Manhã cedo do dia seguinte, Silva conversava com Dilza os
detalhes do serviço que logo mais executaria.
- D. Dilza, o reboco externo da parede está partido e por
ali infiltra água de chuva - Silva apontava o local necessitado de reparo e
arrematava: Com estas duas escadas emendadas, apoiadas logo acima do parapeito
daquele quarto, dá para fazer o serviço. Um pouco de massa, um retoque na
pintura e pronto.
- Cuidado, Silva, é muito alto! Tenha muito cuidado! Dilza
recomendava cautela, porque um vago pressentimento lhe aflorou o pensamento,
mas foi logo espantado pela reclamação que teve que fazer com os dois filhos
que brincavam com fósforos, juntos ao tambor que armazenava gasolina na
garagem. Diante do perigo iminente Dilza descontrolou-
- Querem incendiar a casa seus demônios? Passem já para seu
quarto. Estão de castigo.
Com o fechamento dos Postos aos sábados e domingos, o marido
de Dilza mantinha estoque de combustível em casa para as suas viagens à fazenda.
É proibido, os riscos são enormes, mas os negócios são mais importantes que a
lei e a segurança.
Logo após o almoço, Dilza estava deitada no sofá do living
cochilando e ressonando ouvia alguém que, apavorado, gritava: NÃO FAÇAM ISTO!
NÃO FAÇAM ISTO! Acordou sobressaltada com um baque surdo na rua. Levantou-se
rapidamente, correu à janela e viu, para sua desolação e dor, o Silva
estatelado no meio da calçada, com a cabeça dentro de uma poça de sangue. Com a
queda as escadas desprenderam-se e os dois pedaços, um sobre o outro, formavam
um enorme X.
Desta feita o influente primo nada pode fazer para evitar
que a polícia averiguasse, em pormenores, o acidente. Evidenciado ficou que a
escada não arranhara a parede quando o Silva desequilibrou-se e caiu. Tudo
levava a crer que, ao cair, o Silva trouxera consigo a escada. Ou então a
ruptura do arame que as prendiam, fê-lo desequilibrar-se e cair. Ou ainda, o
arame poderia ter-se quebrado na queda.
- Querido, mamãe não poderá mais viver sozinha. Depois do
acidente vascular cerebral, além da afazia, que lhe enerva por não se fazer
entender pelos que lhe servem (só os nomes feios são inteligíveis), ela vai
necessitar cadeira de rodas. Seu lado direito, segundo os médicos, é de
recuperação lenta e, muito provavelmente por causa da idade, ficará com
irreversível seqüela. Dilza explicava, pacientemente, ao marido, sua intenção
de trazer sua mãe da parte superior da mansão, onde vivia rodeada de
empregadas, para a parte intermediária onde eles residiam com os filhos.
O "ok" do marido saiu automático, insensível e
impaciente, pois Dilza, com aquela explicação atrapalhava seu raciocínio,
concentrado na confecção da Declaração do Imposto de Renda. Era uma declaração
digna de um "expert". Tinha rendimento em todas as cédulas. Mas era
ao mesmo tempo um divertimento. Um esconde-esconde. Um quebra-cabeças. E o
marido de Dilza revelara-se perito neste jogo. Media sua inteligência driblando
o Imposto de Renda.
Entregues à babá, os garotos de Dilza não lhe atrapalhavam
em nada para que ela se dedicasse à sua mãe enferma em tempo integral, com
ajuda do médico, em visitas marcadas, enfermeira e empregadas. Mas ninguém,
ninguém mesmo, podia explicar acidente tão esquisito, quando, escadas abaixo, a
velha hemiplégica rolou com cadeira e tudo.
* * *
- Prá mim chega. Com a morte de mamãe eu não fico nesta casa
um minuto mais. Vamos vendê-la. Chega de tantos acidentes inexplicáveis! Mande
os meninos para a fazenda ou para a casa dos padrinhos no Ceará, enquanto
compramos e arrumamos um apartamento no centro da cidade.
O desabafo de Dilza era perfeitamente compreensível e o
marido, prático como sempre, aventou a possibilidade de alugar, invés de vender
a mansão.
- VENDER.
- O patrimônio, querida! A pintura! A árvore!
- Pros quintos dos
infernos, casa, pintura, árvore!!! Dilza era toda decisão. Inabalável.
Semana seguinte os meninos já estavam voando para o Ceará,
apartamento comprado e mobiliado, casa vendida a uma imobiliária que cuidou,
imediatamente, de demolí-la para em seu lugar erigir um espigão em local tão
privilegiado.
* * *
Mais um tremor de terra em Fortaleza. Quase no mesmo horário
do anterior. Aos 0:35 minutos da madrugada. Este agora foi mais rápido, porém
bem mais forte. Apenas dois segundos, suficientes para encher qualquer um de
intenso pavor. Afora o susto aqui na Capital, quase nada ficou danificado. Os
entendidos destes fenômenos telúricos informaram que o epicentro foi em
Chorosinho. Era só o que faltava! Aparecer neste chão apocalíptico de secas,
enchentes, frustrações e dor, sobre o qual tanta gente falando, romanceando e
politicando ficou famosa nas artes, na literatura e nos desvios de verbas para
flagelados!
Os jornais locais abriram manchetes, referindo-se ao assunto
e informaram que vítimas fatais, apenas duas crianças, atropeladas quando,
apavoradas com o tremor, saíram em roupas de dormir para a avenida, sendo
colhidas por um caminhão de lixo. O motorista e ajudantes prestaram socorro
imediato, levando-as para o Hospital, onde já chegaram sem vida. Ao lado desta
notícia, uma entrevista com um conferencista que, na SUDENE, declarou: "o
nordestino não tem caráter". O cara acertou em cheio! Buliu na ferida de
muitos defensores desta parte dolorida da Pátria. Sofre-se e vota-se naquele que mais enrola! O
figurão político não faz nada por este torrão, mas não esquece de mandar o
discurso que ele pronunciou, impresso, na Câmara ou no Senado, para o seu cabo
eleitoral, dono do curral.
- Você já leu este
discurso?
- Não, ainda não. Não sei ler.
- E que valor tem para você?
- Consideração, gente
boa. Ele mandou para mim! Olha a assinatura do homem aqui.
FIM
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