sexta-feira, 21 de junho de 2019

CONTOS CORRENTES


IVAN IVÁNOVITCH
                            (Vasco Pereira de Oliveira)                            

        Ivan Ivánovitch, um mujique atarracado, saiu de casa e caminhou no frio durante todo o dia, sem comer. Apenas alguma água, que bebia às pressas em potes emprestados dos viajantes que encontrava pelo caminho. Nas mãos nada carregava e com as pernas apenas o peso dos seus oitenta anos. Andava sem rumo como que fugindo de si mesmo, pois a razão teimava abandoná-lo. Deixar a vida já vivida para trás, encerrá-la numa caixa de sapatos e sair em busca de melhor destino. Fugir de casa era um sonho, ele sempre falou que um dia deixaria tudo.
        A fome batia-lhe no estômago. O cansaço dos caminhos pesava-lhe nos ombros e as pernas obedeciam a um comando já embotado que vinha do seu cérebro confuso: andar, andar, não importa para aonde. Pelo caminho, falava sozinho. Ao cruzar com uma árvore, virou-se para ela como a pedir solidariedade e apoio ao que dizia. Ao encontrar um lagarto, que se aquecia sobre uma rocha expondo-se a tímidos raios de sol, perguntou-lhe “Como vai?”. Parado, ficou olhando para o réptil durante o tempo de três respirações ofegantes. Como o lagarto ignorou-o, prosseguiu sua andança enfiando seus pés no chão de neve que resistia ao derretimento.
        Ao longe as luzes denunciavam uma casa, talvez uma estalagem, onde alguma velha espadaúda e mal-humorada faria uma deliciosa sopa de legumes. Mirou as luzes e caminhou pensando na sopa
de legumes.
        Enquanto andava imaginou-se numa casa limpa, lá fora os flocos de neve caindo como notas musicais de uma canção de ninar. Uma lareira, a família reunida e seu avô contando histórias de heróis russos. Olhos e ouvidos de menino, em sintonia, como se atentos às peripécias de um mágico. Sim, seu avô era um mágico. Com barbas brancas, gestos largos e voz cadenciada, hipnotizava o grupo, levava-o às montanhas onde matava
ursos, não sem antes lutar com eles por um bom tempo. Sabia prender a atenção da plateia com silêncios planejados, quando seu braço parava no ar por alguns instantes. Depois acendia a palavra estopim presa na boca, arregalava os olhos e olhava à sua volta, como se pressentisse a presença de inimigos.         
        Enquanto Ivan andava rumo à luz, e o fazia como se buscasse a própria lucidez, pensava na família que tivera. Velho e desprezado, o mujique não aceitava tantas mudanças no mundo e no comportamento das pessoas e nem queria ser abandonado como um animal velho num beco qualquer da vida. Vivera tentando fazer tudo da melhor maneira, obedecendo ao politicamente correto, esforçando-se por não desagradar as pessoas, sempre renunciando a ser ele mesmo. Refletiu como fora difícil não ter conseguido ser ele mesmo. Sempre disse sim quando queria dizer não, concordou sem acreditar no que apoiava e sorriu quando queria chorar. Tudo isso passou-lhe pela cabeça como redemoinhos, o diabo dançando no centro.   
        Da chaminé subia uma serpente de fumaça, o que era bom sinal. Badalou, com as forças que lhe sobravam, o sino pendurado na grossa porta da estalagem. Um velho de cara fechada e bochechas vermelhas veio atender à porta. Ele entrou junto a uma baforada de vento frio, retirando o gorro e batendo-o nas botas, como se tentando limpar a sujeira em respeito ao ambiente estranho. Uma longa mesa de madeira maciça tomava quase todo o salão e várias cadeiras escuras de pernas grossas a contornavam como sentinelas mudas. À esquerda um balcão o separava de uma senhora idosa,de cara redonda, largas ancas e cabelos presos por um lenço branco. Ela também trazia o semblante fechado e o rosto vincado por rugas. Caminhava lentamente com pés que lembravam patas de elefante. Em meio à luz desmaiada do ambiente, um samovar de cobre vermelho mantinha água quente à espera do chá. Sobre a grande mesa alguns restos de comida que os dois estaleiros retiravam calmamente.
        Ivan Ivánovitch sentou-se e pediu algo para comer, pensando numa terrina de sopa com batatas e repolho que lhe aqueceria a alma. Sem dizer nada, a mulher entrou pela porta que a levaria à cozinha e logo voltou com uma travessa de carnes (sobras de um possível banquete). A fome superou a desilusão pela sopa imaginada e ele foi logo atacando a dentadas aqueles nacos de carne. Ficara sem comer por um dia, mas então comeu por dois, três, talvez mais. Somente depois que a fome passou é que percebeu um vulto ao fundo, alguém que sobrou do banquete e dormia bêbado, debruçado sobre o canto da mesa. O homem levantava a cabeça e os ombros a cada três minutos, dedilhava sua balalaica encardida e gritava: “Viva a Rússia!” De vez em quando entoava uma canção que talvez ele mesmo tivesse inventado: “Depois da ponte,/ no fim da estrada/ me espera a amada.”
        Queria dormir e pagou adiantado dois rublos amarrotados. O homem o guiou subindo uma escadaria que rangia ao ritmo dos quatro pés. Subiu atrás do estaleiro, que dizia chamar-se Petrovitch e também caminhava lentamente; lembrou-se da mulher com patas de elefante. Sem mesmo se banhar mergulhou no sono, mas logo o estômago cheio veio cobrar-lhe e pesadelos assaltaram sua mente. 
        Ivan Ivánovitch acordou assustado, suando. Os pesadelos faziam com que ele entremeasse o sono com momentos de vigília, quando tudo parecia confundir-lhe a mente. Não sabia mais o que era real ou imaginário. Seu avô surgia mastigando uma coxa de peru, seu pai trazia nas mãos uma cabeça de cervo recém-caçado, o sangue pingando na neve. 
        Sonhou que tal Ivan Ivánovitch, um mujique atarracado, um belo dia fugiu de casa, caminhou sem rumo e foi dar numa estalagem, depois de um dia sem comer, e encontrou quatro patas de elefante e restos enfastiados de um banquete que devorou e depois teve pesadelos.
        Com a avidez de um cachorro faminto abocanhando nacos de carne fresca, ou um náufrago que se apega a pedaços da nau desfeita pela tempestade, Ivan Ivánovitch se agarrava às réstias de lucidez de que ainda dispunha.Foi num desses instantes que um resto de consciência entrou por uma fresta da matéria escura da sua mente e deu-lhe a certeza de que, o único momento da sua vida em que conseguiu ser ele mesmo foi quando fugiu de casa aos oitenta anos: um sonho de infância. Depois dormiu definitivamente.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças