(Vasco Pereira de Oliveira)
Ivan Ivánovitch, um mujique atarracado, saiu de casa e caminhou no frio
durante todo o dia, sem comer. Apenas alguma água, que bebia às pressas em
potes emprestados dos viajantes que encontrava pelo caminho. Nas mãos nada
carregava e com as pernas apenas o peso dos seus oitenta anos. Andava sem rumo
como que fugindo de si mesmo, pois a razão teimava abandoná-lo. Deixar a vida
já vivida para trás, encerrá-la numa caixa de sapatos e sair em busca de melhor
destino. Fugir de casa era um sonho, ele sempre falou que um dia deixaria tudo.
A fome batia-lhe no estômago. O cansaço dos caminhos pesava-lhe nos
ombros e as pernas obedeciam a um comando já embotado que vinha do seu cérebro
confuso: andar, andar, não importa para aonde. Pelo caminho, falava sozinho. Ao
cruzar com uma árvore, virou-se para ela como a pedir solidariedade e apoio ao
que dizia. Ao encontrar um lagarto, que se aquecia sobre uma rocha expondo-se a
tímidos raios de sol, perguntou-lhe “Como vai?”. Parado, ficou olhando para o
réptil durante o tempo de três respirações ofegantes. Como o lagarto ignorou-o,
prosseguiu sua andança enfiando seus pés no chão de neve que resistia ao
derretimento.
Ao longe as luzes denunciavam uma casa, talvez uma estalagem, onde
alguma velha espadaúda e mal-humorada faria uma deliciosa sopa de legumes. Mirou
as luzes e caminhou pensando na sopa
de legumes.
Enquanto andava imaginou-se numa casa limpa, lá fora os flocos de neve
caindo como notas musicais de uma canção de ninar. Uma lareira, a família
reunida e seu avô contando histórias de heróis russos. Olhos e ouvidos de
menino, em sintonia, como se atentos às peripécias de um mágico. Sim, seu avô
era um mágico. Com barbas brancas, gestos largos e voz cadenciada, hipnotizava
o grupo, levava-o às montanhas onde matava
ursos, não sem antes lutar com eles por
um bom tempo. Sabia prender a atenção da plateia com silêncios planejados,
quando seu braço parava no ar por alguns instantes. Depois acendia a palavra
estopim presa na boca, arregalava os olhos e olhava à sua volta, como se
pressentisse a presença de inimigos.
Enquanto Ivan andava rumo à luz, e o fazia como se buscasse a própria
lucidez, pensava na família que tivera. Velho e desprezado, o mujique não
aceitava tantas mudanças no mundo e no comportamento das pessoas e nem queria
ser abandonado como um animal velho num beco qualquer da vida. Vivera tentando
fazer tudo da melhor maneira, obedecendo ao politicamente correto,
esforçando-se por não desagradar as pessoas, sempre renunciando a ser ele
mesmo. Refletiu como fora difícil não ter conseguido ser ele mesmo. Sempre
disse sim quando queria dizer não, concordou sem acreditar no que apoiava e
sorriu quando queria chorar. Tudo isso passou-lhe pela cabeça como redemoinhos,
o diabo dançando no centro.
Da chaminé subia uma serpente de fumaça, o que era bom sinal. Badalou,
com as forças que lhe sobravam, o sino pendurado na grossa porta da estalagem.
Um velho de cara fechada e bochechas vermelhas veio atender à porta. Ele entrou
junto a uma baforada de vento frio, retirando o gorro e batendo-o nas botas,
como se tentando limpar a sujeira em respeito ao ambiente estranho. Uma longa
mesa de madeira maciça tomava quase todo o salão e várias cadeiras escuras de
pernas grossas a contornavam como sentinelas mudas. À esquerda um balcão o
separava de uma senhora idosa,de cara redonda, largas ancas e cabelos presos
por um lenço branco. Ela também trazia o semblante fechado e o rosto vincado por
rugas. Caminhava lentamente com pés que lembravam patas de elefante. Em meio à
luz desmaiada do ambiente, um samovar de cobre vermelho mantinha água quente à
espera do chá. Sobre a grande mesa alguns restos de comida que os dois
estaleiros retiravam calmamente.
Ivan Ivánovitch sentou-se e pediu algo para comer, pensando numa terrina
de sopa com batatas e repolho que lhe aqueceria a alma. Sem dizer nada, a
mulher entrou pela porta que a levaria à cozinha e logo voltou com uma travessa
de carnes (sobras de um possível banquete). A fome superou a desilusão pela sopa
imaginada e ele foi logo atacando a dentadas aqueles nacos de carne. Ficara sem
comer por um dia, mas então comeu por dois, três, talvez mais. Somente depois
que a fome passou é que percebeu um vulto ao fundo, alguém que sobrou do
banquete e dormia bêbado, debruçado sobre o canto da mesa. O homem levantava a
cabeça e os ombros a cada três minutos, dedilhava sua balalaica encardida e
gritava: “Viva a Rússia!” De vez em quando entoava uma canção que talvez ele
mesmo tivesse inventado: “Depois da ponte,/ no fim da estrada/ me espera a
amada.”
Queria dormir e pagou adiantado dois rublos amarrotados. O homem o guiou
subindo uma escadaria que rangia ao ritmo dos quatro pés. Subiu atrás do
estaleiro, que dizia chamar-se Petrovitch e também caminhava lentamente;
lembrou-se da mulher com patas de elefante. Sem mesmo se banhar mergulhou no
sono, mas logo o estômago cheio veio cobrar-lhe e pesadelos assaltaram sua
mente.
Ivan Ivánovitch acordou assustado, suando. Os pesadelos faziam com que
ele entremeasse o sono com momentos de vigília, quando tudo parecia
confundir-lhe a mente. Não sabia mais o que era real ou imaginário. Seu avô
surgia mastigando uma coxa de peru, seu pai trazia nas mãos uma cabeça de cervo
recém-caçado, o sangue pingando na neve.
Sonhou que tal Ivan Ivánovitch, um mujique atarracado, um belo dia fugiu
de casa, caminhou sem rumo e foi dar numa estalagem, depois de um dia sem
comer, e encontrou quatro patas de elefante e restos enfastiados de um banquete
que devorou e depois teve pesadelos.
Com a avidez de um cachorro faminto abocanhando nacos de carne fresca,
ou um náufrago que se apega a pedaços da nau desfeita pela tempestade, Ivan Ivánovitch
se agarrava às réstias de lucidez de que ainda dispunha.Foi num desses instantes
que um resto de consciência entrou por uma fresta da matéria escura da sua
mente e deu-lhe a certeza de que, o único momento da sua vida em que conseguiu
ser ele mesmo foi quando fugiu de casa aos oitenta anos: um sonho de infância. Depois
dormiu definitivamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças