
AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ
(Jane Alves)
No casarão em que viviam, a biblioteca era o lugar preferido. Augustus, Nicodemus e Cornélio ali passavam horas, com o imenso playground só para eles: túneis, esconderijos, escorregadores, campos de futebol, bolinhas de papel e pistas de patinação. Vidão! À noite, com fome, só correr à despensa e se fartar de farinhas e defumados, goiabada e queijo, competentes que eram para violar qualquer embalagem. Água não faltava no banheiro da biblioteca, sempre pingando e com ralo entupido. A
qualquer hora uma soneca tranquila, já que o lugar era interditado aos gatos e faxineira só tinha permissão de entrar uma vez por mês, sob o olhar vigilante do velho-que-amava-livros, para não mudar nada de lugar. Este passava horas ali sentado em sua grande poltrona de couro, cachimbo esquecido na boca, lendo, lendo, lendo, cochilando, às vezes.
A vida corria assim feliz, quando, à hora da refeição, descobriram horrorizados que o túnel para a despensa, ali desde o início dos tempos, havia sido bloqueado. Já havia dias que o velho não aparecia e a faxineira fazia tempo não era vista. Correram atarantados por todos os cantos procurando uma saída, sondaram o ralo do banheiro, a janela que nunca se abria, todo o entorno da pesada porta, até caírem de exaustão ao escurecer, num sono agitado e pesadeloso. A realidade da fome os acordava para retomar a rotina frenética e mal sucedida, dia após dia sem encontrar uma luz no fim do túnel.
Augustus era o glutão da turma, se empanturrava do que achasse em sua frente, gordão e pesado. Nos bons tempos tinha pressa de encher a pança e voltar para seu paraíso. Natural que fosse agora o mais desesperado, testando restos de fumo, perna de cadeira, estofamento de couro. Nessa busca esvairada
encontrou uma brecha na costura da poltrona, embrenhou-se nela. Oh! Alívio! Provou o algodão do estofo, adorou! Manancial inesgotável. Sobreviveu aos engasgos da avidez inicial, empanzinou-se até quase morrer, hibernou até a fome o acordar, tão satisfeito, que ali podia viver até o fim de seus dias, sem mais ter se arriscar por aí à cata de comida.
Nicodemus, passado o 1º susto, não desesperou: lembrou-se de recorrer aos livros, já que havia passado a folhas de jornal abandonadas – embora não as achasse apetitosas - numa época em que a casa ficou vazia, antes de ser comprada pelo velho-que-amava-livros.
Testou o sabor de um livro, era O Capital. Achou-me indigesto, roeu umas beiradas, o suficiente para sair da fome-zero. No dia seguinte tratou de passar longe daquele livro e de seus vizinhos. Foi provando um aqui, outro ali, até sentir um sabor de aventura que o prendeu da 1ª página à última, quase não conseguindo fazer as pausas necessárias para o sono de cada dia. Era “A volta ao mundo em 80 dias” e Nicodemus viajou para uma vida nova, nunca dantes imaginada. Engoliu o livro com tal sofreguidão, que sentiu necessidade de dar uma grande volta por toda a biblioteca, digerindo tudo devagarinho. Encontrando Augustus prostrado atrás da Enciclopédia Britânica, quis partilhar sua descoberta do valor nutritivo dos livros. Inutilmente. Augustus era o gourmet da trinca, exigia ingredientes exóticos, queijos franceses, presunto de Parma e se não os encontrava na despensa, preferia fazer jejum. Não era amigo dos livros.
Que fazer? Voltou rápido ao seu novo prato preferido, continuando na mesma estante: “Vinte mil léguas submarinas”. Entusiasmou-se de tal maneira, que a custo conseguia parar para dormir e beber água verdadeiro rato de biblioteca que virou, sem cura, para sempre.
Também desta vez sentiu necessidade de dar uma longa volta digestiva, ao fim da aventura, devorada com sofreguidão. Nem mesmo lembrava mais dos companheiros, tão absorvido por seu novo alimento, que, estava certo, era só o começo de infinitas possibilidades nutritivas. Mas no mesmo lugar encontrou o pobre do Augustus, já morrendo de inanição. Despertou nele um sentimento heroico, tendo acabado de se alimentar de tantas vitórias incríveis de seu herói, quando tudo parecia quase perdido: lutaria para salvar o companheiro. Tentou esfarelar umas páginas de autoajuda, forçar as migalhas na boca exangue de Augustus, ele não aceitou, cuspiu. Buscou Filosofia, pior ainda. Ia tentar umas migalhas de Fome, mas achou que poderia ter efeito adverso. Deu-lhe um estalo, lembrando do gourmet que seu amigo fora. Pegou um livro de Cozinha
Tradicional Portuguesa com ilustrações lindíssimas e, escolheu criteriosamente para a emergência uma ilustração leve, doce, de linda cor amarela, apetitosa: papas de carolo. Depositou com cuidado uma migalha na boca do quase defunto Augustus e este abriu os olhos, ao tempo em que trancava na boca o inesperado manjar dos céus. Mais migalhas da ilustração, mais olhos abertos e brilhando, movimentos recuperados, redescoberta do mundo e da alegria de viver. Com forças próprias Augustus logo aprendeu o caminho da estante de Culinária: lindos livros franceses, alemães, italianos, chineses, indianos, brasileiros – só não ingleses nem americanos - todos cheios de ilustrações apetitosas de carnes, defumados, queijos, suflês, pães, peixes, tudo quanto há de bom –
sem esquecer as dos doces, que o resgataram da cova - páginas que prenunciavam orgulhoso prazer para o resto da vida de Augustus.
O velho havia morrido e logo veio o caminhão de mudança carregar todos os livros para a Biblioteca Pública, para onde se mudaram Augustus e Cornélio, com possibilidades ainda maiores de vida feliz, enquanto a poltrona, depois de recuperada – Cornélio conseguiu manter-se nela - acabou indo parar na mesmíssima Biblioteca Pública.
Nicodemus e Augustus pressentindo os riscos maiores de sua nova morada, haviam retomado os antigos hábitos de vida noturna. Não tardaram a reencontrar Cornélio, que saía da toca à noite, em busca de água e de conhecer os arredores. Aceitando sua hospitalidade, passaram a partilhar o esconderijo confortável, onde, apesar de nada mais terem em comum, já longe o tempo de brincadeiras e competições, harmonizavam suas solidões senis e silenciosas: Nicodemus, que nos últimos tempos se alimentava só de enciclopédias, fazia monumental samba do crioulo doido
com toda a cultura engolida às pressas, mas refugiava-se glorioso nos sonhos de personagem heroico das nunca esquecidas aventuras que o salvaram na juventude; Augustus, já com o paladar bem deteriorado, tinha preguiça de buscar novidades alimentares, ia definhando; Cornélio, pachorrento, se comprazia em comer o algodão de sempre, o que fatalmente levou a poltrona murcha, inútil, a ser “doada” para um asilo, onde os 3 foram terminar seus dias alimentados a melancólicos restos de
mingau surripiados dos companheiros velhinhos.
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