
No dia primeiro de agosto, Menalton Braff teve sua história contada nas páginas do site História do Dia. A seguir, pulicamos o texto integral.
Menalton Braff, vencedor do
Prêmio Jabuti, dedica seus
dias à literatura
Lá na década de 70, em meio a rotina de trabalho, Menalton proferiu: “Vai chegar um dia em que vou ter meu tempo todo livre para a literatura”.
Liguei para marcar a entrevista. “Quando você pode?”, fui
perguntando. “Olha, já faz alguns anos que eu acordo e pergunto para a minha
esposa: ‘Qual domingo é hoje?’”.
Aquele tal dia chegou faz quase uma década. Ele não sabe
exatamente quanto tempo, mas sabe que muitos livros já foram escritos na
constância desses domingos rotineiros.
– Para mim, a literatura exige tempo. ‘Nas folguinhas eu
escrevo’ não é minha experiência. Eu quero estar inteiramente disponível. Se eu
pensar: tenho que levar uma carta no Correio, não escrevo.
Seu primeiro livro publicado por uma editora, “A sombra do
cipreste”, que lhe rendeu o Jabuti, um dos principais prêmios de literatura do
País, em 2000, não foi feito em dias de domingo, entretanto.
“Mas se trata de um livro de contos”, ele enfatiza. Contos, explica, se escreve de uma vez. O romance, modalidade na qual diz se encontrar como escritor, exige integralidade.
“Mas se trata de um livro de contos”, ele enfatiza. Contos, explica, se escreve de uma vez. O romance, modalidade na qual diz se encontrar como escritor, exige integralidade.
– No romance, a gente deixa a imaginação trabalhar. A
desgraça do romancista é a interrupção. O clima é fundamental. Ele tem que se
sentir dentro daquela situação.
A entrevista não foi em um domingo, mas era como tal.
Menalton Braff me recebeu na biblioteca de sua casa em Serrana, região de
Ribeirão Preto. Sentou-se em uma poltrona de frente para a prateleira farta de
livros que, a cada quando, lhe resgatavam uma memória.
Por volta das 11h, tomou uma taça de vinho. Me explicou que
tem sido religiosamente assim há três anos, quando enfartou. Só segue – boas –
recomendações médicas.
Só ao final, já depois de horas de bom papo – para mim, pelo
menos – ele contou o grande detalhe daquela terça-feira de domingo, 23 de julho
de 2019. Estava comemorando seus 81 anos, enquanto me relatava sua trajetória.
Rememorando a vida, no dia de celebrá-la.
Daria um belo conto, pensei. Dará uma bela história!
Menalton Braff, vencedor do prêmio Jabuti, dedica seus dias
à literatura
São 25 livros publicados, um já em fase de edição e outros
tantos aguardando a hora. Uns 10 nas gavetas, ele diz. Além do Jabuti, soma
outras dezenas de premiações pelas suas obras. O livro que está escrevendo
atualmente vai levar uma década para publicar, avisa, para meu desgosto de
ansiosa.
Os personagens são quatro músicos de um quarteto, em ritmo
de fuga, que ele me explica ser um recurso da música erudita de combinar
instrumentos, que entram e saem do arranjo sem prejuízo para o andamento da
obra. Fez piano na adolescência e leva a música para o enredo da literatura. “É
uma espécie de obsessão”, denomina.
O pai era professor. Menalton, apesar de três décadas de
docência, diz que nunca quis lecionar. “Precisava sobreviver” e foi o caminho
possível depois da faculdade de Letras, feita para conhecer a literatura por
dentro.
Aos cinco anos, aprendeu a ler vendo o pai ensinar sua irmã,
um ano mais velha, pela técnica do Gestalt. A ideia não é aprender em letras e
sílabas, mas em histórias, pelo todo.
Ficava observando as aulas com o queixo postado em cima da
mesa. Um dia, o pai pediu que a irmã lesse e ela não conseguiu. O rosto do
professor foi ficando vermelho, tal qual sua ira. Para não ter que ver o fim
daquela cena, que poderia terminar em palmadas, leu no lugar da irmã.
– Nem eu sabia que sabia ler. Eu ficava olhando aquilo e me
apaixonava pelos risquinhos que viravam história.
Logo depois, leu O Guarani, de José de Alencar, em uma
adaptação de quadrinhos feita para crianças. Ficou tão encantado que não parou
mais. Por volta dos sete, oito anos já escrevia poemas, depois de aprender tudo
sobre eles lendo uma obra de Olavo Bilac.
– Aos oito anos eu já sabia o que era uma rima rica,
métrica. Comecei escrevendo poeminhas de criança, claro. A certa altura, achei
que a poesia me dava pouco espaço. Queria uma coisa menos espremida e fui para
os contos.
Na adolescência, usou três cadernos para escrever um
romance. Mas foi só quando conheceu Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Érico
Veríssimo que decidiu ser escritor de fato. Conta que, até então, não entendia
muito do que se falava nos livros.
– Machado de Assis, por exemplo, eu adorei na infância, mas
mais ainda quando reli, já adulto. Falava de coisas que eu tinha que imaginar.
Quando eu comecei a ler a geração de 30, eles falavam de coisas que eu
conhecia.
Menalton Braff escritor
O trajeto até concretizar o desejo de ser escritor foi um
tanto comprido. Fez o chamado “clássico” no colégio, em Porto Alegre, onde a
família vivia. Nasceu no Rio Grande do Sul e cresceu por ali.
Na sua turma de escola, os temas eram literatura e política.
Matavam aulas para ir ao parque próximo discutir poesia. Quando chegou o
vestibular: surpresa. Prestou Economia e chegou a cursar dois anos até
constatar que não, não era seu caminho.
Nessa parte da história, as coisas ficam anuviadas. Levou um
tanto de anos para conseguir tocar no assunto. Só o fez em 2004, com o auxílio
da literatura. Escreveu “Na Teia do Sol”, para falar sobre a ditadura que
oprimiu.
– Eu fiquei 35 anos tentando, sem conseguir escrever. Me
dava um nó na garganta.
Menalton se engajou nos movimentos políticos contrários à
ditadura. E teve que deixar sua terra fugindo, sob ameaça de morte, que fora o
fim de um amigo.
– Essas pessoas que ficam chamando os militares não imaginam
as atrocidades que foram cometidas.
Viajou para São Paulo com um motorista que nunca mais viu,
em um carro arrumado pelos amigos dos movimentos. Chegou em 1965 e levou alguns
anos para conseguir “se legalizar”, como diz. Trabalhou no escritório de uma
pequena metalúrgica, cujo dono sabia – e aceitava – sua história. E aproveitou
o tempo que sobrava para ler.
– Foi uma época que escrevi muitos contos. Comprei uma
máquina de escrever Olivetti e escrevia em papel jornal. Era barato.
Quando os ânimos se acalmaram, pôde entrar na faculdade de
Letras. Depois de formado, por volta de 1973, optou pelo que não queria.
– Eu nunca quis ser professor. Mas, quando terminou o curso,
eu tinha o conhecimento de literatura e o magistério. Abracei e fui dar aula.
Tinha que sobreviver.
Abraçou, mas com profecia:
– Eu pensava: “Vai chegar um dia em que vou ter meu tempo
todo livre para a literatura”.
Menalton Braff escritor
A única data que Menalton lembra de cabeça, sem pestanejar,
é a da chegada em Serrana, região de Ribeirão Preto: 06/02/1987.
Veio pela esposa, com quem soma 39 anos de relacionamento,
com a paixão dos começos.
Se conheceram na faculdade. Ele tinha 42 e ela 20.
– As pessoas não aceitam essa diferença com facilidade.
Diz que até a formatura dela “não encostaram um dedo”.
Depois, ele quis logo juntar os travesseiros. Ela não quis ter filhos. Foi a
regra colocada quando aceitou o pedido de casamento, conforme ele conta.
Viveram em São Paulo até o final da década de 80, quando os
pais dela vieram morar em Ribeirão Preto. A saudade apertou, as viagens eram
constantes e decidiram também partir.
Ela passou em um concurso para dar aulas em Serrana. Ele
deixou as aulas em São Paulo e seguiu sem muitas perspectivas. Logo, passou a
lecionar literatura em escolas. Também escreveu para a imprensa local.
– Cheguei a ter sete empregos ao mesmo tempo!
A escrita foi ficando para quando chegasse o dia. Escrevia
pouco, perto do que veio depois. A leitura sempre foi constante, porém.
Poderíamos passar uns três dias citando seus escritores preferidos. Faz a
seleção por país, aliás. Tentando não deixar alguém de fora.
Depois que se aposentou, final da década de 90, continuou
dando algumas poucas aulas. Foi quando escreveu o livro vencedor do Jabuti, em
1999.
Decidiu parar de vez por volta de 2010.
– Eu vi que não iria mais suportar o modo com que os alunos
estavam tratando os professores. O desrespeito é muito frequente. E é muito
triste.
Os domingos rotineiros chegaram, com as horas do dia
divididas entre a leitura e a escrita. Lê dois, três livros de uma vez. Um fica
na cabeceira, o outro na poltrona de frente para a biblioteca, onde passamos
nossas horas de conversa.
Menalton Braff escritor
Menalton conta que anos atrás voltou a Porto Alegre para
revisitar sua juventude. Procurou o colégio onde fez o clássico, matando aulas
para ir ao parque falar de poesia.
– Claro que foi uma decepção. Essa decepção de toda pessoa
que tenta voltar para o passado. As coisas mudam e as pessoas mudam.
Uma avenida foi construída no lugar.
– A nossa geração achava que iria salvar o mundo. Não
salvou.
“Mas o mundo tem salvação?”, pergunto eu.
– Eu já perdi a esperança de salvar o mundo. Nós odiamos,
matamos, não nos indignamos. Pode até piorar, melhorar não vai.
Aos 81 anos recém completados, vive a desesperança.
– Eu sempre fui um brasileiro muito nacionalista. Era
fanático pelo Brasil. Hoje, eu me envergonho de ser brasileiro. O mundo todo
está rindo do Brasil. Nós caímos no ridículo.
Desesperança com as pessoas, com as instituições, com o
atual governo, que elogia a ditadura e desmerece a cultura e o humano.
– A cultura te mostra o lugar em que você existe no mundo.
Dá para viver sem cultura, mas qual é a qualidade dessa vida? É uma vida
elementar. Existe vida mais rica, mais pobre, mais elementar. Há muitos meios
de se viver.
Aos 81 anos, vive a desesperança. Letra a letra da palavra.
– Houve um tempo em que eu acreditava na humanidade. Agora,
nem isso. Eu gostaria de voltar a ter aquela esperança, mas não dá mais. A
humanidade está se pervertendo.
Um leitor se incomodou com o tom. “Você só pinta o mundo de
uma forma escura”, criticou.
– Eu até gosto de rir, mas como escrever coisas alegres
vendo o mundo pervertido? É muito difícil engolir tudo o que a gente está
engolindo.
A literatura, então, é o respiro. O pouco alívio possível.
– Para continuar suportando, a gente escreve. A ode é viver.
Há desesperança, mas não arrependimento: é bom frisar.
Comemora a vida que viveu. Toda ela: letra por letra.
– Eu teria repetido tudo. Tive mais erros do que acertos,
mas, se tivesse que voltar, cometeria todos os mesmos erros. Ajuda a crescer.
Quem nunca erra, não sai da infância. Sei lá… talvez alguma coisa eu fizesse
melhor. Ou não fizesse. Mas não me arrependo de jeito nenhum.
Não fala como quem já terminou, porém.
– Eu tenho um irmão com 84 anos, mora no Mato Grosso e diz
que está proibido de morrer antes dos 108 anos. Eu, antes dos 100. Se tiver
saúde.
Até lá, o plano é viver uma porção de domingos, temperados
com vinho tinto seco e muitas, muitas palavras. A literatura é fuga, musicada e
vivida. Uma bela história!
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