segunda-feira, 17 de agosto de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff. A de hoje é inédita.

 Porque assim se fazem as coisas  

O título me ocorreu ao me lembrar daquele final da Farsa da Inês Pereira, do genial iniciador do teatro português, o Gil Vicente.

E é claro que estou a fim de contar um episódio que me deixou marcas profundas, talvez exemplares. Era um tempo em que matar passarinho tinha uma significação atávica ligada à sobrevivência; além disso, ninguém ainda pensava como agora em politicamente correto. O exercício do poder sobre a natureza passava por meu estilingue.

O que vou contar aconteceu em Taquara, a cidade onde nasci, e onde cursei o ginasial vivendo em internato.

Numa manhã tépida de primavera, com sol maneiro, andava pelos arredores de nosso dormitório com o estilingue no bolso de trás. Eis que uma andorinha das mais lindas que conhecia pousou num fio da força elétrica. Um tipo raro que nunca mais encontrei em lugar algum. Ela tinha penas marrons e as remiges pretas. Seu voo era um pequeno sol travesso que revoluteava contra o céu azul.

O caçador, que fui, preparou um cascalho mais ou menos redondo, colocou-o no corinho, esticou as borrachas e disparou o petardo. É preciso me situar. Muito tempo de tentativas infrutíferas: não derrubava nem laranja da laranjeira, muito menos acertava em passarinho.

Acertei. E a andorinha, ferida, desceu do fio de asas abertas, sem as mover, desenhando uma espiral até o chão dois passos na minha frente. 

Quando a levantei do chão, ainda quente, descobri o ferimento no seu papo. E agora?, pensei. Ela não vai mais voar fingindo-se de um pequeno sol. Que sentido poderia ter minha vitória?

Eu estava com onze, doze anos, mas já tinha algum discernimento sobre as coisas da vida. Matar apenas como esporte, pelo prazer que isso possa proporcionar, é qualquer coisa monstruosa. Foi quando cheio de remorso quebrei a forquilha do estilingue, arrebentei as borrachas e joguei tudo num córrego, jurando que nunca mais mataria pelo simples gosto de matar. Jamais voltei a ter um estilingue, mesmo antes de se falar em preservação da natureza. Não me abstive de novas armas por imposição de lei nenhuma.

Se o fiz, foi pela compreensão epifânica do que é a vida.

Sou um cidadão comum, sem nada de excepcional. Por isso me assombra o espetáculo da indiferença governamental ao falar de cem mil mortes de seres humanos.

Não sou cristão, como eles, não preciso da noção de pecado, para compreender a importância de todo ser vivo, sobretudo do ser humano.

E eles se ofendem quando se fala em genocídio. Não existe a intenção de matar?

Creio que não. O que me parece que existe é a indiferença com a morte e o desprezo pelo sofrimento daqueles que perderam familiares queridos.

Porque assim se fazem as coisas.

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