Josés
(Tiago Feijó)
– José, José... Você é mesmo inteligente! Acho que compreendeu
perfeitamente o que eu quis dizer... Está feito: Vamos publicá-lo!
(Tiago Feijó)
Para Leonardo Zanella e José Saramago
Voltava sempre assim, lerdo, lento, conjurando a demora dos passos,
após o seu habitual passeio noturno. Vinha sempre pelas mesmas ruas, optando
ordinariamente pelas mesmas calçadas, pisando quase invariavelmente os mesmos
ladrilhos daquele obstinado caminho, como se desconhecesse a óbvia
possibilidade de outro percurso, de novas rotas. Retornava ao seu apartamento
com a pontualidade e o método costumeiros. Pouco antes, havia caminhado até a
orla da praia, afundara na areia o seu tênis branco, andara estranhamente sobre
aquele chão movediço e se colocara, com calculada cautela, a uma segura
distância da franja da água, queia e vinha como uma lenta respiração. Como o
céu estivesse muito escuro e sem estrelas e não houvesse luz de barcas no
horizonte, parecia que a noite se derramava sobre o mar, confundindo-se numa só
coisa, para vir se dissipar na areia em efêmeras espumas. Sem dar por isso, ele
apenas olhara, os olhos metidos na escuridão, pensando no que sempre pensava
quando ali se deixava ficar:
nas suas personagens e no fim que lhes daria.
Estava na iminência de terminar o romance que pacientemente ia urdindo
noite após noite, das quais aquele habitual passeio noturno era uma espécie de
preâmbulo. Como num ritual, após o jantar, ia para borda do mar e ali concebia
longos diálogos, cenas inusitadas passadas em remotos lugares, características
físicas das personagens e partes da trama que crescia entre elas. Era ali,
fitando a escuridão, que se resolvia a vida das pessoas que inventava. Depois,
aquietadas na memória as decisões que tomava, levava-as até o apartamento,
sentava-se diante do computador e as depositava na tela em duas ou três horas
de escrita.
O passeio de hoje não tardara mais que os outros e por isso ele
retornava ao apartamento, como sempre pelo mesmo caminho, com as decisões
aquietadas na memória a fim de depositá-las na tela do computador. Chamava-se
J. J. Fernandes, pelo menos era este o nome que encimava a folha de rosto de
seu romance, sabendo-se muito evidentemente que aquele primeiro J. era de José,
enquanto o segundo, mais evidente ainda, de qualquer outro nome que começasse
por aquela letra.
À entrada do edifício, foi saudado por um mecânico e corriqueiro “boa
noite” do porteiro, que para isso não se deu o trabalho de retirar os olhos da
TV; encontrou vazio o elevador, o que lhe era comum, e contou um a um os
andares que a gaiola de ferro rompia veloz até estacar no seu, o décimo quarto;
e mesmo diante da porta quase aberta, não desconfiou que dali a instantes um
absurdo acontecimento rasgaria de cima a baixo o grosso tecido da sua realidade
tão palpável e ordenada. Ao pisar no apartamento, J. J. Fernandes topou com um
homem sentado em sua poltrona, imerso na semiescuridão da sala. Primeiro, teve
um susto quase manifesto; em seguida, um medo contido e consciente que o fez
correr os olhos pela sala em busca de um objeto rijo e pontiagudo; depois,
visto que o homem não se mexeu nem descruzou as pernas, nas quais se adivinhava
a rótula saliente de um joelho sob o tecido da calça, J. J. Fernandes sentiu
uma inevitável curiosidade e deu dois passos adiante. Com o avanço, a
fisionomia do homem se revelou na penumbra e J. J. Fernandes o reconheceu.
Reconheceu, incrédulo, o rosto magro, cuja testa atravessada de vincos ganhava
a planície calva da cabeça; reconheceu as grossas sobrancelhas arqueadas sobre
os óculos garrafais; reconheceu a boca isenta de lábios, calada, mas que
outrora estivera tão cheia de palavras.
Temeroso de que estivesse tresvariando e afundado em completa confusão,
J. J. Fernandes soube apenas recuar sobre seus passos, trancar a porta do
apartamento e retornar à rua no intuito de encontrar razão cabível para tão
inexplicável encontro. Desta vez, errou por ruas desconhecidas, em passos
peripatéticos de filósofo confuso; foi dar na orla da praia e sentou na areia
sem nenhum cálculo, deixando que seus pensamentos vogassem à deriva. Sem
entender-se consigo mesmo, voltou tarde da noite ao apartamento, que encontrou
vazio e em silenciosa ordem, e atravessou o resto da noite num sono intermitente
e intranquilo. Acordou como se não tivesse dormido e o dia transcorreu num
torpor de insônia. Ao fim da tarde, diante da poltrona, apalpou-a como se ela
mesma fosse irreal, procurando algum vestígio das improváveis nádegas do
impossível intruso. Depois do jantar, rendendo-se ao hábito, foi ao seu passeio
noturno, mas não pôde entregar-se aos seus personagens porque o retorno ao
apartamento o tomava por inteiro, dando-lhe a impressão de que a
verossimilhança de sua vida estava prestes a se romper definitivamente. Diante
da porta do apartamento, cogitou o absurdo de que o olho-mágico pudesse
funcionar às avessas, autorizando o de fora a ver o de dentro, e se apercebeu
em ridícula atitude ao pôr em teste o absurdo cogitado. Ao pisar no
apartamento, J. J. Fernandes topou novamente com o homem sentado em sua
poltrona, as pernas cruzadas apontando-lhe a rótula saliente de um joelho sob o
tecido da calça. Mas desta vez, por uma sábia e premeditada artimanha do
intruso, um abat-jour aceso e um livro aberto na mão faziam com que este
emergisse das fantasmagóricas penumbras da véspera para a atmosfera calma e
amigável de uma sala iluminada. Diante disto, e porque já se havia decidido a
não mais recuar, J. J. Fernandes entrou e fechou a porta atrás de si. E foi
como se fechasse a porta de um sonho, no qual entrara pelo simples intermédio
de uma chave comum e ordinária, que nada tinha de onírica.
Por trás dos óculos garrafais, o insuspeitado visitante assistiu
serenamente à lenta aproximação de J. J. Fernandes e decifrou-lhe nos passos
uma espécie de perplexidade e a fragilidade de uma inventada coragem. Esperou,
muito pacientemente, enquanto o dono da casa sentava-se defronte a ele, sem lhe
tirar de cima os olhos, que cresciam de espanto e descrença, e só então fez
ecoar pela sala a insana realidade de sua voz, num melódico português lusitano
já esperado:
– Podes te despir de teu temor, José, pois tu não estás em perigo de
vida. Cá estou em missão de paz, e como podes ver sou apenas um velho, incapaz
de qualquer maldade. Sabes quem sou?
A esta primeira pergunta J. J. Fernandes não achou voz para resposta;
com a cabeça, apenas, produziu um meneio de duvidosa afirmação.
– Podes então me dizer qual é o meu nome? – continuou o homem, fechando
o livro que tinha nas mãos e passando-o a J. J. Fernandes, que não fez mais do
que ler duas palavras escritas na capa.
– José... José Saramago...
– Pois bem, José, estou a ver que apesar do medo ainda te manténs
lúcido.
E J. J. Fernandes, arrancando da garganta a voz desaparecida:
– Já não tenho tanta certeza disso... e... convenhamos... ouvir o
senhor me faz crer ainda menos na minha lucidez.
– Compreendo a confusão em que estás, mas não vamos nós nos atermos a
estes pormenores. Se tens alguma dúvida pergunte-me logo e passemos ao que de
facto interessa.
– Ao que de facto interessa... – repetiu baixinho J. J. Fernandes,
tentando arremedar o sotaque das terras de além-mar – O que me interessa agora
é saber como o senhor está aí, sentado na minha poltrona, conversando comigo e
ignorando o fato de já estar morto... e pra mais de um ano!
Imperturbável e com um minúsculo riso sem expansão, Saramago retirou os
enormes óculos da cara e os esfregou na camisa, enquanto J. J. Fernandes
recolhia, atônito, os sons provenientes de tão real fricção; depois, com muito
bons gestos, Saramago devolveu os óculos aos olhos e perguntou socraticamente:
– Acaso tu me velaste o corpo, José?
Silêncio...
– Não! – respondeu J. J. Fernandes, desconfiabundo.
– Acaso tomaste parte no cortejo que me conduziu à cova e me viste ser
enterrado num buraco de chão?
Nisso, J. J. Fernandes gastou um instante de inútil reflexão.
– Não!
– Nem o poderia, José, posto que não fui enterrado, mas cremado, e
minhas cinzas jazem ao pé de uma oliveira, árvore que por gerações alimentou o
meu povo.
Mais silêncio...
– Então... o senhor... está mesmo morto?
– Mas é claro! Se estou a lhe dizer que fui cremado, como posso ainda
estar vivo. E se não sabes formular o que cá se passa, José, digo-te logo para
que acabemos de vez com este diálogo desajuizado: sou um fantasma e, por assim
dizer, venho do mundo dos mortos; cá estou porque tenho um último livro a
escrever e, por algum erro de cálculo, não me foi dado tempo suficiente para
isto.
Súbito, J. J. Fernandes ergueu-se e desandou pela sala em passadas
incertas e vacilantes, como se andasse a pisar invisíveis formigas. Aquilo não
tinha razão de ser, impossível que estivesse travando tão absurdo diálogo com
tão inexistente interlocutor. Certo era que algo de profundamente sério havia
desalinhado seu juízo. Na esteira deste pensamento, foi tomado por um trêmulo
pavor ao pensar que o signo da loucura já devia estar tatuado no alto de sua
testa e que as pessoas de seu convívio passariam a olhá-lo com demasiada
atenção e indisfarçável medo, como quem olha um cão entupido de raiva a
engasgar seus latidos numa argola de corrente, e a partir de então, e para
sempre, viveria à margem daqueles que comungam da perfeita sanidade do mundo,
como uma espécie de expatriado do país da razão. Em desespero, J. J. Fernandes
embarafustou pelo banheiro adentro no intuito de encontrar no espelho a
fisionomia ensandecida e desfeita de um louco que vira na infância e que jamais
esquecera, mas deu apenas com o mesmo e conhecido rosto de todas as manhãs,
devidamente mais corado, é verdade, porejando no alto da testa gotículas do
orvalho da aflição e com os olhos coerentemente estalados de quem pensa ter
visto um fantasma. Abriu a torneira atropeladamente, num desacerto de mãos, e
lavou o rosto em água abundante. À medida que se enxugava, ocorreu-lhe a
reconfortante suspeita de que aquele disparate não mais estava sentado em sua
poltrona, que decerto já se havia retirado para os confins de uma ilha
destinada às aparições; e ficou a ouvir o silêncio grande do apartamento,
entrecortado apenas pelos derradeiros pingos da torneira. Retornou para sala
suspenso, seguro de sua suspeita, suplicando o milagre de ver na poltrona a
ausência do descabido visitante. Mas deu com Saramago no mesmo lugar que o
deixara, imóvel e indiferente, a olhar fixamente para o seu corpo esquivo
parado no vão da porta, à laia de um cachorro assustado que hesita entre sair e
entrar.
– Deixa de parvoíce, José! Tu pareces uma criança que vê pela primeira
vez o coito afoito dos adultos; além do que, há no mundo muito mais absurdos do
que o absurdo de um fantasma que vos fala. Tu não és mesmo capaz de ver o que
há de óptimo nisso? Achega-te, senta-te aqui comigo, tenho muito o que lhe
falar. Como já disse: cá estou porque tenho um último livro a escrever e não
posso desperdiçar o pouco deste tempo que me resta. Tu foste o escolhido! És
tu, José, o homem que escreverá o meu último livro!
Parado ainda no vão da porta, a se reconhecer como um estranho na
própria casa, J. J. Fernandes vislumbrou a nesga de um mal formulado
entendimento. E como se esquecesse das fundamentais questões que o
atormentavam, pronunciou esta pergunta repleta de cristandade, quase
vaidosamente:
– Por que eu?
E Saramago sorriu em silêncio, como um deus diante da ignorância humana
a despachar uma tosca revelação:
– Tu me surpreendes deveras, José... Foste o escolhido por motivos
vários, dos mais banais aos mais essenciais: porque vives sozinho nesta casa de
solidão e é mais prático a um fantasma aparecer a um homem solitário do que a
uma família inteira com seus velhos e crianças e cachorros; porque moras nesta
cidade à beira-mar e do mar jamais consegui afastar-me; porque és o projecto
esboçado de um escritor que escreve bem, mas sobre nada, e sabes a grafia
correcta das palavras; e, por fim, esta insignificante coincidência: tu te
chamas José e tenho por este nome uma simpatia irresistível! Agora acalma-te e
não percamos tempo, é preciso que comecemos...
Mas não começaram naquela noite porque o anfitrião quis saber mais e
melhor sobre a singular circunstância em que se achava; fez um mundaréu de
perguntas a fim de decompor a veracidade irrefutável daquele simulacro que, à
sua frente, fabricava no ar, com as vivas mãos que tinha, um balé gestual tão
real que mais parecia a J. J. Fernandes estar diante de homem vivo que de homem
morto. E atravessaram a noite num extenso palavrear até que, em hora
desconhecida da madrugada, ao retornar da cozinha com uma jarra d’água para
saciar a sede do falecido escritor, J. J. Fernandes não o encontrou em seu
lugar, nem em lugar nenhum da casa. Antes de adormecer, os olhos pregados no
teto, J. J. Fernandes ainda pensou que jamais em sua vida havia cogitado a
possibilidade de fantasmas terem sede.
No dia seguinte, após o seu habitual passeio noturno, J. J. Fernandes
encontrou Saramago ouvindo um antigo vinil de Chico Buarque, enquanto
compulsava um livro da estante. Ao dar com a cena, J. J. Fernandes constatou,
aparvalhado, a grata satisfação de vê-lo assim, tão dono de sua casa. E nesta
noite então, sem mais delongas, o vinil de Chico Buarque a rodar no
toca-discos, principiaram a fabricação do último livro do galardoado autor
português. Quem bisbilhotasse pela janela daquele décimo quarto andar veria o
rosto de J. J. Fernandes iluminado pela luz do monitor e seus dedos cravados no
teclado a transpor para a tela as palavras ditadas por um vulto que, às suas
costas, caminhava de um lado para outro e, de quando em quando, ia até o
toca-discos mudar a face do vinil. E assim, durante muitas noites, sempre após
aquele habitual passeio noturno. Não escreviam sempre, é claro, porque o dono
da casa inventava cansaços e indisposições, visto que mais lhe apetecia um dedo
de conversa do que o trabalho que suas mãos executavam sob a chefia do
sobre-humano visitante. Saramago percebia de imediato o ardil do outro e lhe
acabava por autorizar a noite de folga, porque também a ele apetecia o deleite
do colóquio. E foi numa dessas noites, varadas em conversa, que J. J. Fernandes
se viu surpreendido por um pedido de Saramago:
– Quero que tu me tragas um cão, José!
– Um... o quê?
– Um cão, José. Sabes o que é um cão? Não... não me perguntes por quê!
Basta olhares para ti, ao teu redor, vives sozinho nesta casa, dia e noite,
completamente sozinho; não conversas com ninguém, não pedes nada a ninguém, não
importunas ninguém; e, nesta desgraça de vida, ninguém te importuna, ninguém te
pede nada, ninguém conversa contigo... não tens ninguém, José!
– Tenho você... todas as noites, ultimamente...
– Eu sou um fantasma, José! Existo apenas para ti, não pertenço mais ao
mundo dos vivos e, quando terminarmos o que de facto interessa, vou-me embora
para a eternidade e tu voltarás, noite após noite, a estar novamente sozinho
nesta casa. Se vais permanecer solteiro o resto de tua vida, se os pés de uma
rapariga jamais pisarão o chão deste apartamento, quero ao menos que me tragas
um cão, José...
J. J. Fernandes custou a encontrar o sono na noite destas palavras.
Isso porque pensou profundamente no verdadeiro sentido delas. Pareceu-lhe
estranho a sutil referência que Saramago fizera à sua solteirice, aos pés de
uma rapariga no chão do apartamento, à sua fatal despedida a caminho da
eternidade quando dessem fim ao livro que escreviam juntos; e finalmente,
aquele pedido descabido, contraditório mesmo nas suas próprias justificativas,
pois lhe parecia claro, clarinho mesmo, que aquele cão com suas fezes, sua
fome, seus latidos, suas importunas efusões de afeto, que aquele cão e todas as
suas necessidades seriam as únicas coisas que restariam, de orelha em pé no
centro da sala, quando o livro terminasse e o famoso fantasma desaparecesse
definitivamente. Desentendido e sem qualquer decisão posta no firme, J. J.
Fernandes afundou na escuridão do sono quando a madrugada ameaçava amanhecer.
Dois dias depois, retornando mais cedo de seu habitual passeio noturno, J. J.
Fernandes rompeu porta adentro sopesando num dos braços um montículo de pelos
em que faiscavam dois olhinhos assustadiços. Contou a Saramago, muito desinteressadamente,
que por um acaso dos acasos encontrara na praia uma jovem muito simpática, que
ali estava para o fim de achar possíveis donos para a ninhada de sua cadela, e
que ele mesmo hesitara muito antes de se decidir, e que os cachorrinhos todos estavam
amontoados dentro de uma caixa de papelão e tinham o cheiro de boca depois do
café da manhã, e que a moça era mesmo muito apegada aos bichinhos, porque
exigira o endereço dele dizendo que iria visitá-lo para ver se o animalzinho
estava sendo bem cuidado. E ao dizer isso, J. J. Fernandes não pode deixar de
pensar nos pés da rapariga pisando o chão de seu apartamento. E durante toda
aquela noite de novidades, os dois Josés, esquecidos de seus afazeres,
conversaram e brincaram ao redor do pequenino animal; e riram mais do que
estavam acostumados a rir; e um falou de um futuro que jamais havia cogitado,
enquanto o outro lembrava de um passado que era toda a sua vida. Antes de
desaparecer, talvez para os confins de uma ilha destinada às aparições, Saramago
asseverou, tentando limpar a voz da alegria exagerada da noite:
– Amanhã nós nos voltaremos com toda a força para o livro. Tu, José,
ainda tens o tempo de uma vida inteira para festejar; eu, há muito que já
excedi o meu.
E se voltaram com toda a força para o livro. Na noite seguinte, quem
bisbilhotasse pela janela daquele décimo quarto andar veria o rosto de J. J.
Fernandes iluminado pela luz do monitor e um vulto, às suas costas, a lhe ditar
um rio turbulento de palavras.
A estória do livro era simples, mais que simples, era de certa forma
conhecida para quem conhecesse de certa forma um pouco da história do próprio
autor. O personagem primeiro da narrativa era um homem humilde chamado José,
neto de criadores de porcos, nascido numa provinciana vila do Distrito de
Santarém. Quando menino, José fora curioso e ensimesmado; homem feito,
tornou-se afeiçoado ao trabalho e à leitura. Passou a vida entre livros e viveu
para escrevê-los. Por força de seu agudo raciocínio crítico, não pôde acreditar
em Deus, embora carregasse nos ombros o peso descomunal da tradição cristã de
seu povo, gente temerosa e indulgente. Corajoso e portador de uma singular
honestidade, não calou o grito profano e proclamou a todos o seu convicto
ateísmo, por mais demoníaco que isso soasse. Disse, vezes sem conta, que Deus
não existia, que não havia jeito Dele existir, e que se existisse seria, entre
os homens, o homem mais cruel deste mundo. E retirava do mundo e dos homens os
principais argumentos para tal afirmação. José foi malevolamente criticado por
muitos, que viram nele o que ele realmente era: um homem sem fé. O Papa não
hesitou em excomungá-lo, castigo maior ao maior pecado dentre todos os pecados.
José resistiu até o fim, até seu último instante, e morreu como todo grande
homem deseja morrer: por excesso de vida. Morto e cremado, José vislumbrou a
verdade das verdades: descobriu que estava certo! Descobriu que depois da morte
não havia Deus, nem anjos, nem céu; e que no seu caso não havia nem mesmo o
inferno. Descobriu que depois da morte só uma coisa havia: o nada, um nada
profundo, privado mesmo do próprio silêncio do nada. Como recompensa a tantos
anos de verdade e coragem para proclamá-la, José recebeu o privilégio de ser o
primeiro e único homem a voltar ao mundo dos vivos e anunciar o que de fato há
para além da morte. E, como não poderia deixar de ser, José decidiu fazer isso
por meio de um livro.
Era esta a estória que escreviam juntos os dois Josés. E mais: Saramago
trouxera do mundo dos mortos o mesmo estilo que o consagrara em vida: rompia
com a convenção do diálogo, pervertia a pontuação numa lógica pessoalíssima,
enveredava por atalhos narrativos para retornar, páginas além, à trilha
principal, e seus imensos parágrafos se erguiam à altura de cabeças de girafas.
Para quem o lia, uma página apenas bastava para reconhecê-lo.
J. J. Fernandes não tardou para compreender, no todo, as minúcias do
acontecimento. Mas não proferiu palavra, apenas trabalhou e sentiu-se grato por
ser o primeiro homem a quem a verdade se revelava. Noite após noite, seus dedos
cravados no teclado se exauriram compondo palavras, frases, parágrafos. Ao fim
de alguns meses, a noite atravessada pelo meio, J. J. Fernandes escreveu as
derradeiras palavras do livro, ditadas quase na vírgula de sua orelha: “Ao homem
cabe aceitar que é apenas um homem, como um pássaro é apenas um pássaro, uma
árvore é apenas uma árvore, um verme é apenas um verme. E como um verme, uma
árvore e um pássaro, o homem morre e desaparece, para sempre, totalmente. A
morte é uma doença sem cura e, para o homem, viver é o melhor remédio.” Depois
disso, Saramago findou, ainda muito perto, muito perto da vírgula da orelha de
J. J. Fernandes:
– Está acabado, José... O livro está acabado! Não há mais o que
escrever. Anota aí o endereço do homem a quem tu enviarás o teu livro. E não te
esqueças de colocar o teu nome na capa... Está acabado!
J. J. Fernandes teve um assomo de assombro:
– Meu livro? Meu nome? Mas este livro é teu, esta estória é tua...
Aliás, é a tua própria história... foi você quem a escreveu!
– Tu me surpreendes deveras, José! Desde quando fantasmas escrevem
livros? Tu acaso pensaste que ele sairia com meu nome? Vais dizer o que aos
outros...? Que te encontravas toda noite com o fantasma de José Saramago em teu
apartamento? Pois se nem mesmo Deus existe, como pode haver então o fantasma de
José Saramago? Vão rir da tua cara, José! Além do que, foram as tuas mãos que
escreveram cada palavra deste livro; foi o tempo da tua vida que dedicaste a
ele; e graças as tuas noites, varadas em aceso, que este livro está findo! Tu,
José, és o verdadeiro autor deste livro. E não quero ouvir objeções. Aceita e
anota aí o endereço do homem a quem enviarás o teu livro.
J. J. Fernandes cogitou retorquir tal insânia, porque tudo afinal lhe
parecia absurdamente confuso, mas pela primeira vez no decurso de todas essas
noites notou no companheiro um certo abatimento, uma espécie de palor na pele,
um embotamento nos olhos. Por fim, aceitou e anotou o endereço do tal homem, e
enquanto o fazia, ouviu às suas costas a fatal despedida:
– Boa noite, José! Foi um enorme prazer...
J. J. Fernandes ainda se voltou para ver, mas Saramago já havia
desaparecido, envolto em para sempre, restando apenas o cão, crescido em meses,
de orelha em pé no centro da sala.
Ao cabo de um mês, dois dias após a visita de Caroline, a moça dos
cachorrinhos, J. J. Fernandes se encontrou com o tal homem do endereço num
restaurante à beira-mar. O dia se erguia num azul imenso e o sol rebrilhava na
dourada areia quente. J. J. Fernandes, desatento, alheio, como que entregue a
uma alegria cansada, trazia nos olhos a inundação do mar e um riso bobo na cara
de quem se alimentatrazia nos olhos a inundação do mar e um riso bobo na cara
de quem se alimenta de um feliz anteontem. À sua frente, cheio de gestos e
euforia, o tal homem arquitetava um discurso confuso:
– Vamos publicá-lo. Meu Deus! Um Saramago fantasmagórico... E a
reprodução do estilo, perfeita, assustadoramente perfeita... De onde você tirou
essa ideia?... Você é espírita? Não! Não tem importância... O anunciador do que
de fato há depois da morte... melhor não poderia... um ateu... Só um leitor
voraz de Saramago seria capaz de... Meus parabéns!... Deixa o resto comigo...
Nós vamos publicá-lo, sem dúvida, mas com uma condição...
Nisso, J. J. Fernandes voltou a si, vascolejando a cabeça para dissipar
do pensamento o cão e a sua antiga dona:
– Condição...?
– Sim, José! Com a condição de que você me autorize a incluir, no pé da
capa, a seguinte inscrição – e o tal homem, com a ponta do dedo indicador, fez
como se escrevesse no ar a tal inscrição – “Ditado pelo espírito de José
Saramago”. Será o maior lobby editorial de todos os tempos. Mas é preciso que
você compre a ideia até o fim, sem ousar desmenti-la!
Então veio o garçom, industrioso, estabelecendo um breve silêncio entre
eles; só o ruído de pratos e talheres descendo sobre a mesa. Após o que, J. J.
Fernandes, em voz de segredo, murmurou para o homem:
– E se eu lhe disser, com toda sinceridade, que durante os últimos
meses, toda noite, encontrei Saramago no meu apartamento... e que este livro,
tal como está, foi mesmo ditado por ele, você acreditaria?
E o tal homem, pleno de satisfação:
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