sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

CONTOS CORRENTES

TENTAÇÃO OU DEVOÇÃO?
(Shellah Avellar)

Era uma daquelas noites geladas de inverno. Os romanos se enfurnavam nas cantinas em busca de sorver um Vino Rosso da Távola, para aquecer seus corações e mentes.

Fugindo da nevasca, dois monges, Bento e Lucius, se refugiam numa pousada, com paredes em pedra talhada à mão, telhado cuneiforme e cortinas rendadas nas janelas quadriculadas de madeira e vidro.

Uma construção típica do século XVIII.

À luz das grossas velas, se assentam em uma mesa próxima à lareira que faiscava centelhas de brasa incandescente.

Por um segundo, aqueceram suas mãos e retornaram à mesa.

Sob os pratos, lia-se: “Hoje, 29 de novembro, seu dia de sorte, peça um Nhoque!”.

Um deles, Lucius, apaixonado por nhoque – tradicional massa cozida italiana, feita de batatas, ovos, molho de tomate e parmesão – mal escondia o ar de satisfação, lambendo os beiços e esfregando as mãos.


Enquanto isso, o outro, Bento, em jejum, afastou o prato, rezando o Pai Nosso em agradecimento, pediu um copo de água, sob o olhar de reprovação de Lucius.

Bento evocava as Leis Mosaicas, os hábitos espartanos e relembrava o jejum de Jesus no deserto, enquanto Lucius era a encarnação de Lúcifer, exaltando os benefícios do amido e da fécula da batata para absorver os resíduos da gordura.

O sabor salgado do parmesão, para sedar o frio dos rins. E do poder vitamínico do tomate, para vitalidade do corpo.

Bento, inquieto, sacou o terço dos bolsos largos da batina e discorria dezenas de Aves e Santas Marias e Glórias ao Pai, num canto orfeônico.

O odor quente do nhoque ganhou os ares da Cantina, fumegando em espiral e penetrando as narinas de Bento que, inconsolável, se agitava na cadeira.

Quando a rolha do Vino Rosso da Távola deixou escapulir o seu bouquet encorpado, preenchendo o ambiente, Bento, num rasgo de devoção, sorveu toda a taça de Lucius, de um só gole, vociferando: “Esse é o meu sangue!”.


Em seguida, abocanhando, sofregamente, várias colheradas de nhoque, gritou: “Esse é o meu corpo”, sob o olhar atônito de Lucius e dos presentes.

4 comentários:

  1. Gratidão,Menalton Graf e Sylvia Leite pela abertura de seu espaço pro meu conto-desabafo para as hipocrisias e fundamentalismos.Bjaks kósmikas!

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  2. Agora, Shella, você faz parte do grupo de donos do espaço.
    Menalton

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  3. Parabéns Shellah. O final, inesperado, surpreende o leitor e dá um tom cômico ao formalismo da ambientação.

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