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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

CONTOS CORRENTES

 DA BANALIDADE DA VIDA OU DE FAZEDORES DE ANJOS 

(Shellah Avellar)

"Tenho pensado muito nos últimos tempos, eu diria “quase todo dia”, sobre estes públicos de risco e em situação de exclusão.

Mas apesar de ser sensível e solidária a todo este leque de pessoas sob ataques e perseguições estúpidas, a questão da mulher e seu lugar no mundo, volta sempre a incomodar.

Até porque também faço parte deste target.

Ontem, no final da tarde, na fila do supermercado, uma senhora entrou meio apavorada dizendo que o vigia de uma casa em obras no Brooklin, encontrou morta , uma menina de aparentemente 10 anos, com sinais de violência e estupro.

As reações? Normais, de espanto e indignação. E não faltou quem dissesse que as meninas “de hoje” aos 10 anos já parecem mulheres, e se vestem de maneira extremamente sensual.

Daí, me veio à cabeça, a mulher saudita que foi estuprada e “de quebra “,por isto, recebeu 200 chibatadas e prisão por 6 meses.

E , pensei na menina.Que nome teria? Teria pais vivos e presentes? O que estaria fazendo porali?

Resolvi batizá-la de “Angel”.E tentei desenhá-la no auge de seus dez anos: -Será que ia à escola?Fazia todas as refeições do dia?Se tinha sonhos?Se gostava de estudar ? O que será que ela gostaria de ser ,ou vir a ser ou de ter sido? De amar e de ser amada?

E esta coisa me pega e me remexe e me embrulha , num misto de cansaço e solidão.

A gente que escreve, pode esboçar os afrescos do imaginário e dar à menina o retrato que merece: -”simplesmente menina.”

Penso nas meninas de 10 anos que conheço.Na menina que fui.Na menina que minha filha foi.

Nas meninas –mulheres de todos os matizes que vivem por aí afora.Nas molecagens.No abandono das bonecas e em suas recaídas .Nos bichinhos de pelúcia que vão ficar sem seu abraço companheiro de noites insones ou medrosas.

Dos olhares românticos para aquele menino ou menina especial. Dos diários cor- de- rosa. Dos papéis com marcas do batom das mães. Das intermináveis tagarelices ao celular com as melhores amigas .Dos vestidos floridos e esvoaçantes .Da ansiedade das festas. Das tristezas sem motivo. Da euforia gostosa de simplesmente existir e ter a vida pela frente.

A vida que se banaliza pelo instinto selvagem.Pelo animal que grita e se sobrepõe ao racional impotente.

A vida, que num átimo ,em que a ternura dá lugar às línguas sedentas ,mãos violentas, órgãos invasores, de homens que ignoram a nobreza em si próprios.

Será que tentou resistir ao flagelo?Ou aquela memória não esperava a derrota pra se revelar?

Teria uma fé clandestina que a mantivesse viva? Pra testemunhar seus horrores?

Será que tentou gritar?Será que algum transeunte a ouviu ,mas não tinha “tempo” de parar para averiguar se alguém de sua “raça humana” precisava de ajuda?

Mas ,após o fato “consumado”, muitos destes transeuntes apressados, tem tempo de parar,” para saber o que houve, para ter o que contar quando voltar pra sua casa .

E, alguns destes ficam ali por horas, se alimentando da dor alheia. Para compensar a opacidade de seus dias .E contam um conto mais um ponto. Porque quanto mais sensacional suas invencionices, mais ouvintes gulosos serão saciados. Até a nova tragédia urbana.

Saio correndo do supermercado, apresso o passo, cada vez mais fortemente.

Preciso ir pra casa.Chorar baixinho por Angel, esta desconhecida tão familiar.

A melancolia me leva até o universo das luas , que se compadecem dos artistas e faz brotar de suas feridas, imagens oníricas que o desprendem de sua realidade fúnebre.

E me inebrio com o farfalhar de asas de Angel , que alça vôos mágicos para bem longe das ninharias e dos monstros antropóides que ,com seu bestiário, insistem em molestar as crianças e “fabricar anjos”.

Aceno para Angel, que deixa atrás de si rastros de estrelas e poeira de fim de mundo. 

quarta-feira, 17 de junho de 2020

CANTIGAS DE AMIGOS

MISCIGENAÇÃO 
(Shellah Avellar)                                                                           

Como se fosse uma guerra 
BRANCO,O NEGRO, 
O AMARELO E O VERMELHO 
Se digladiam... 
Entretanto Estas mil faces 
Têm ímpetos de céu 
E olhos cheios de estrelas...
VOCÊ SOU EU 
EU SOU VOCÊ 
Talvez não faça sentido... 
Quantos pulos são precisos
Para juntos darmos um salto? 
E podermos ser 
Tudo o que quisermos. 
Abrindo a página 
Em branco e preto 
Para que todas as cores 
Pinguem e se misturem. 
E os pontos de vista 
E acordes dissonantes 
Se harmonizem 
Em um único e vigoroso SOM

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

CONTOS CORRENTES

Filósofos da marginal*

(Shellah Avellar)

Eram 10 horas da manhã de um sábado ensolarado.

E então, partimos, os quatro cavaleiros apocalípticos em sua jornada mítica em busca de nosso herói de cada dia.

Desafiando a carga da semana que trazíamos nas costas, desfilamos a pé pelas entranhas da Paulicéia.

Pelas calçadas múltiplas adormeciam embolados sob cobertas improvisadas, panos e mantas rotas-os invisíveis- homens, mulheres e crianças que sonhavam a sono solto em pleno dia, num repasto de reis, posto que recolhiam da vida suas últimas gramas.

Como num trem-fantasma, silenciosos, prosseguíamos em nossa cavalgada a pé, como observadores privilegiados das misérias humanas, num retrato sem retoques.

Tentamos o Terraço Itália, sem sucesso, num átimo de fugir do rés do chão e ampliar a perspectiva para tornar microscópica aquela dura realidade.

Nos distraímos com a majestade das velhas construções revitalizadas e evocamos o espaço dos apartamentos e seus pés direitos quase imperiais, comparando às ínfimas caixas de fósforo em que hoje nos amontoamos, imposição da moderna engenharia urbana.

O ir e vir dos cidadãos se atropelando para consumir os preços módicos do comércio do centro, atrasou nossos passos. Enfim, o Teatro Municipal, o Viaduto do chá e tudo parecia simples e corriqueiro.

De repente, o coração sonhava, atraído pelos arranhados toscos de um violino ao longe.Um homem, sentado num caixote, com um chapéu no chão, onde descansava algumas parcas moedas.

A imagem se precipita na paisagem corriqueira. Paramos. Seu nome? José Rosa, que paradoxo. Num cenário de vida tão cinzento a nossos olhos desavisados- lá está ele: José Rosa,80 anos. Abre um sorriso que ilumina qualquer desesperança.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

CONTOS CORRENTES

O Sucessor 

(Shellah Avellar)

-Trata-se de política, está claro? - vocifera o velho líder.

O capitão, alheio às suas palavras e continua polindo seus botões e engraxando seu coturno.

-Tá ouvindo Saissem? - gritou Alul.

Saissem responde: - Sua força existe porque o senhor nada possui. O senhor não conhece os que estão a seu lado. O senhor é o último chefe antifascista do Reino de Lisarb . Conforme-se!

-Um homem da História é um fermento. É um grão. Olhe para mim, capitão!

O capitão continuava cabisbaixo, polindo seu coturno. Retruca : A História se realiza com o martírio.

-Você só pensa nisto, não é Saissem? Pedaços de corpos humanos e sangue.

-Ir longe. Bem longe. E, assim, permanecer. Saissem sussurra com olhos esbugalhados.

-Mas permanecer em face de quê?

-Da Mentira. Verdadeira ou Falsa! E a repetição tem valor de promessa. O povo quer o engano. A libertação de seu sofrimento é a ilusão. A obra recomeça sempre a partir da derrota. Não há vitória.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

CONTOS CORRENTES

Cali Cool sem noção

(Shellah Avellar)


Cali Cool é destas moças sestrosas, que andam naturalmente mostrando e fazendo exaltar seu rebolado.

Cali Cool é loura, ou ao menos assim se apresenta para o mundo, que é o que parece mais gostar de fazer, e o faz mesmo com gosto, para não deixar pedra sobre pedra quando passa.

Fala, assim, como um trio elétrico, sem se importar se está incomodando os outros ou outras simples mortais que por ali tentam se concentrar, ou viver sua vidinha em paz.

Cali Cool vende, troca, sapateia e pratica malabares nos faróis.

Cali Cool se vira nos quarenta???

Cali Cool poderia ser feliz, se não tivesse tanta vontade de parecer feliz e bem resolvida.

Cali Cool conta sua vida inteira com detalhes, mesmo para quem não tem interesse nenhum em ouvi-la.

Cali Cool abre os olhos, e bem cedinho, pela manhã, já pega seu celular amigo, que parece colado à sua orelha, e vai, toc-toc, caminhar pelos corredores e pelas varandas para mostrar que é hiperativa e competente, falando bem alto e em mau tom.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

CONTOS CORRENTES

O espelho*
(Shellah Avellar)

― Quem é você?

Ela para. Olha fixamente o espelho à sua frente.

Fria e inconteste, aquela voz ecoava em sua cabeça, chacoalhando-a impunemente em um tom devorador de lobo faminto. Na velocidade de um raio, que, sem deixar dúvida, vai registrando cada ricto de dor passada, drama alheio de sua loucura, sulcada nas íngremes camadas de uma vida.

Desbrava as suas entranhas com a navalha afiada e impiedosa da realidade.

Não se esquece dos altos e baixos, nem do fog que acinzenta as cores que lhe foram sequestradas.
Das tempestades que lhe açoitaram as costas e lhe fizeram perder a postura empertigada. Do suor que explodia, irrigando os poros e drenando o pânico.

Ela não pestaneja. Enfrenta o espelho.
Responde:
— Não sou mais a artista. Sou a minha própria obra de arte. Sou o frêmito da minha embriaguez.
Mas o intrépido espelho revela as angústias dos sonhos não realizados.
Questiona o pescoço, já não tão viçoso como outrora. A pele flácida do colo. Um tecido que o ferro do tempo não alisa. Testemunha dos anos desleixados nos cuidados consigo mesma. Um papel impossível de rasgar.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

CONTOS CORRENTES

viajante

(Shellah Avellar)

Felinto Callado era ranzinza, desleixado e rico, com uma casa empoeirada e lúgubre. De índole ácida, não era uma daquelas pérolas da existência e já vivera sessenta anos num mundo com muito pouco a deixar para a posteridade, a não ser desânimo e rudes palavras.

Era o solteirão caçula de três filhos de um pai ausente e mãe depressiva. E, em virtude do casamento bem-sucedido dos irmãos mais velhos, acabou tomando o lugar do pai na casa e na vida da família, desde seus quarenta anos.

O pardo gato Ludovico parecia ser o único objeto de afeto de Felinto, o único que dava uma atenção sonolenta às suas lamúrias diárias.

Tudo transcorria na mais desolada rotina, até que, naquela noite fria e chuvosa, o sino da porta de madeira pesada e carcomida tocou insistentemente às três da madrugada.


Felinto se espreguiça.  E, entre irritação e apreensão, se levanta da cama num salto. Olha o relógio e mastiga alguns palavrões. Veste o roupão desbotado e desce as escadas. Despendura o bastão esquecido na parede do hall. Recorda-se languidamente de sua paixão adolescente pelo beisebol.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Ella*
(Shellah Avellar)**

Ella era a única mulher ali naquela bizarra e nada gentil reunião.

Todos se levantaram e a deixaram só.

Suspirou aliviada. Era o início de uma vitória.
Há alguns bons anos tentara introduzir seu ponto de vista naquela comunidade.

Mas aqueles aldeões carregavam estereótipos e preconceitos alimentados através de séculos de patriarcado, em relação a qualquer figura feminina.

As expressões endurecidas. As cicatrizes do vento que sulcavam as faces dos lavradores eram iluminadas pela lua, que, intrusa, teimava em acender aqueles olhos desesperançados.

O cheiro da terra molhada impregnava o casebre. A fogueira, lá fora, ardia seus carvões estertorosos após a chuva.

Seu apelo por liberdade fora ouvido. Isto é o que importava.

Seus olhos disparavam, errantes, maravilhados. Ella viera para ser feliz, e assim já se

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

CONTOS CORRENTES

TENTAÇÃO OU DEVOÇÃO?
(Shellah Avellar)

Era uma daquelas noites geladas de inverno. Os romanos se enfurnavam nas cantinas em busca de sorver um Vino Rosso da Távola, para aquecer seus corações e mentes.

Fugindo da nevasca, dois monges, Bento e Lucius, se refugiam numa pousada, com paredes em pedra talhada à mão, telhado cuneiforme e cortinas rendadas nas janelas quadriculadas de madeira e vidro.

Uma construção típica do século XVIII.

À luz das grossas velas, se assentam em uma mesa próxima à lareira que faiscava centelhas de brasa incandescente.

Por um segundo, aqueceram suas mãos e retornaram à mesa.

Sob os pratos, lia-se: “Hoje, 29 de novembro, seu dia de sorte, peça um Nhoque!”.

Um deles, Lucius, apaixonado por nhoque – tradicional massa cozida italiana, feita de batatas, ovos, molho de tomate e parmesão – mal escondia o ar de satisfação, lambendo os beiços e esfregando as mãos.