sexta-feira, 12 de outubro de 2018

CONTOS CORRENTES

Conto publicado na Antologia Solidária Barretos

Sidcley e o Futebol

Raquel Milagres de Mattos 
I

A final do campeonato estadual estava acirrada e não havia chance das equipes atacarem com possibilidade real de gol. O técnico saca do time dois figurões – que não estavam fazendo nada, só se arrastando e perdendo a bola – e coloca dois novatos. Se era pra perder, que fosse arriscando e não sendo chamado de atrasado. Há 10 anos o time não era campeão e a cobrança de todo mundo era muito grande e, com a chegada à final, a pressão aumentara.

Um dos meninos que era a opção do técnico – Sidcley – era o mais tímido deles e mal podia acreditar na sua sorte. Ia jogar! Iria realizar o sonho de menino! Na concentração e nos treinos, era deixado de lados por seus companheiros e até mesmo seu técnico não lhe dava as devidas oportunidades. Os demais se reuniam e grupos de orações, Glória a Deus – eles gritavam, mas o deixavam de fora. No fundo ele achava melhor, mesmo. Sua mãe sempre dizia pra se afastar daqueles que falam uma coisa e fazem o contrário. Mas, às vezes, ele se questionava: O que eu fiz para eles? Por que eles me odeiam se nem me conhecem? Queria mesmo deixar pra lá, mas ainda não conseguia de fato.

Com um misto de curiosidade, perplexidade e euforia, parou à beirada do campo e recebeu tapinhas nas costas do treinador, do preparador físico – que até lhe ofereceu um copo d’água – do jogador que havia saído para ele entrar. Surpreso pela recepção, Sidcley se sentia entorpecido. Entrou em campo com o pé direito, se benzeu – como sua mãe havia lhe ensinado – e correu para o meio, onde era seu
lugar. Se aproximou de um outro jogador para passar instruções, que aproveitou a oportunidade para se alongar, segurando seus braços, para se livrar de uma câimbra que já lhe ameaçava a panturrilha.

Muitos de seus colegas ainda pareciam não acreditar no que o técnico – tão criterioso – tinha feito. Colocar aquele moleque pra jogar? Não sabe nem correr direito!, além dos apelidos tão desagradáveis que tinham para ele – Mané, Franguinho, Jujuba, entre outros, não aqueles apelidos descolados que os jogadores de futebol têm. Mas Sidcley não se importava: sua hora chegaria, mesmo sem que os outros não passassem a bola pra ele; mesmo que o excluíssem das brincadeiras da concentração, ele não desistiria.

Aquele era o melhor dia da vida dele e ele não ia deixar barato.

Passados meros 15 segundos da sua entrada, o zagueiro pareceu não se intimidar com ele na entrada da grande área e de repente Sidcley estava lá, com a bola no pé, sem zagueiro (o havia desarmado, espetacularmente, segundos antes), cara a cara com o goleiro e... Goooool! Golaço! Não acreditava! Tinha feito o gol! Correu como um louco pelo campo e, de repente, não era mais o Mané, o Franguinho: era o cara que tinha feito o gol que levava a sua equipe a um feito muito esperado. Dez anos que não eram campeões estaduais. Era muito tempo para um time grande. Sidcley estava mudando essa história. Seria lembrado, haveria uma foto sua na galera levantando o troféu. As pessoas pediriam seu autógrafo nas camisetas, tirariam fotos em seus celulares. Entrevistas, manchetes de jornal – “O jovem que trouxe o título” –, um contrato decente e um salário compatível com um vencedor. A Seleção Nacional! Isso sim era ostentação. Ia poder comprar uma casa pra mãe e seus irmãos viverem melhor, com mais dignidade. Não naquele “muquifo” em que os 8 se apertavam. Tá, não era tão ruim assim, mas ele queria – e agora podia – ter mais. Tinha acabado de sair da base e o salário do primeiro mês só deu pra pagar umas dívidas da mãe – ainda bem! – e fazer umas compras e um churrasquinho para os irmãos. Também ia ter um carro melhor – do ano! – para não precisar ir mais no seu carango velho para o treino. Seu pai havia deixado aquele de “herança” – se é que se pode chamar aquilo de carro, com mais remendos do que a bola que jogava futebol no campinho quando era criança – mas ainda assim quebrava um galho.

Viu seus companheiros correndo em sua direção e pulando em cima dele: Nelson e Joãozinho foram os primeiros, já que estavam mais perto, formando aquela montanha humana – sufocante. E, num instante, a alegria deu lugar ao pavor, ao pânico. Saiam de cima de mim!, mas as palavras estavam apenas em sua cabeça. Frações de segundos agoniantes, dores por todos os lados, seu corpo ia ficando sem ar, pesado, desesperado. Um gorgolejo de vida, rápido como seus pensamentos sobre a felicidade; sua vida se esvaiu em segundos eternos. Dali, Sidcley nunca mais levantou. Nada de carro, de casa, de fama e glória. Ele era agora um corpo estendido no chão.

II

Nelson era considerado o novo gênio da bola. Ainda não tinha tido a sorte suprema de fazer um gol definitivo, que o consagrasse, mas sabia que os olheiros estavam ali e era só uma questão de momento. Um golzinho apenas e tudo poderia mudar. Sonhava em uma vida de milionário. Nunca havia sido pobre, mas queria ser muito rico como os outros jogadores que ele idolatrava.

Os escolhia no videogame, encarnava o personagem, vibrava com os lances perfeitos que a ficção permitia e que alguns conseguiam a proeza de fazer na vida real. Era só tempo até ele ficar famoso, ser vendido pra Europa, convocado para a Seleção e arrasar nas festas, nas baladas, comprar um
jatinho, ter várias contas nas redes sociais, ser “O” cara! Seus amigos já o consideravam “O” cara! Era o líder nato. E ele não gostava do Sidcley e convenceu todo mundo que não deveriam gostar do menino também.

Por isso, mal podia acreditar que aquele mané do Sidcley tinha feito o gol que era pra ser dele. Quem poderia imaginar? Agora era tarde, não tinha sido ele a fazer o gol. Mas o que podia fazer? Correu em sua direção, como todos os outros. Tinha que comemorar, não podia mostrar que não estava feliz. E, de qualquer forma, um título ajuda na carreira.

Pulou em cima de Sidcley, junto com os outros, mas logo percebeu que estava alguma coisa errada. Todos perceberam e saíram o mais rapidamente que puderam. Correria. Confusão. O árbitro afastou todo mundo. Chamou o médico. Ele não está respirando! Rápido! – gritou o árbitro. Mais confusão.
Ambulância. Mas, dentro de Nelson, algo se manifestava e ele ainda não sabia o que era. Tristeza ou felicidade. Sabia que era errado estar feliz, então devia ser tristeza mesmo. Mas ele já havia sentido tristeza antes e aquilo ali poderia ser qualquer outra coisa, menos a sensação de perda. Não gostava do Sidcley? Não. Mas não podia estar contente com aquela morte. Ou podia? Quem estaria dentro dele para saber? Regozijou–se com isso e imaginava que seus colegas também.

III

As unhas dos dedos eram somente uma recordação na mão de João Maia, apelidado de João Bala na época em que jogava; era um dos melhores na sua posição. Atacante veloz, com boa presença de área, tinha tudo para estourar e ser um grande nome. Fazia muitos gols, mas nunca teve uma oportunidade de jogar em um grande time da capital, ser visto, ser aproveitado. Era somente bom. Hoje em dia, estava mais para João Bola, dada suas circunferências abdominais avantajadas – resultado de anos comendo como um imperador romano – afinal, sua carreira tinha ficado melhor quando resolveu se aposentar e começou a trabalhar como técnico.

A sorte foi mais generosa consigo desta vez – estava a cargo daquele grande time, no qual queria ter tido oportunidade de jogar. Mas ser técnico era melhor. Tinha começado nas categorias de base e adorava seu trabalho. Via os meninos se desenvolverem em campo, tudo por causa dos seus conhecimentos bem aplicados. Fazia cursos, se atualizava e pretendia, quando tivesse chance, de fazer aqueles estágios na Europa, ser um profissional conhecido, reconhecido e diplomado. Rapidamente subiu ao time principal, quando seu predecessor havia falhado inúmeras vezes e fora demitido. Surgiu mais como uma opção “tapa–buraco” de emergência do que necessariamente
uma escolha unânime da diretoria. Mas lá estava; tinha resolvido fazer daquela oportunidade o momento chave da sua carreira. Levara o time à final do estadual, mas as coisas não estavam indo do jeito que ele sonhara.

O adversário – um time do interior, até então inexpressivo – resolveu tomar forma de time grande justo nas finais e derrubara muitos dos grandes. E ali estava ele dando trabalho à esforçada e talentosa equipe de João Maia. Já no desespero, olhou para o banco e avaliou suas opções. Sidcley, o menino
desajeitado mas competente, que ele conhecera desde cedo, logo que havia entrado na base, mas a quem ele não se afeiçoava (e engrossava o coro dos outros jogadores que troçavam dele, mesmo que discretamente) e Joãozinho, seu filho mais novo, que ele ainda não havia dado a devida oportunidade para não o chamarem de nepotista ou coisa assim. Tudo bem que o garoto não era metade do que ele havia sido com aquela idade, mas ainda assim sabia fazer tudo direito. Os outros não serviam para a posição que ele precisava. E sabia que, se sacasse do time quem precisava e o time perdesse, haveria
repercussão negativa.

Sempre fora bastante ponderado sobre suas opções, mas hoje ele estava se sentindo particularmente sortudo, apesar da situação em campo não se mostrar assim, e resolveu fazer o que queria. Os meninos iam entrar. A torcida, ao ver o árbitro erguer a placa sinalizadora com os números daqueles que seriam substituídos, se inflamou em vaias a João. Ele já sabia que isso iria acontecer. Nem a torcida parecia gostar de Sidcley – será que alguém, fora da sua família, gostava dele? – mas nada ele podia fazer.

Qual não foi então a surpresa de João Maia, que mal havia tido tempo de retornar ao banco, ao ver Sidcley sozinho com a bola, dentro da grande área? Moleque! Faz esse gol! Não podia acreditar! Finalmente ia dar certo! Correu, gritou, lavou a alma e não percebeu logo a confusão que se formou ao redor do menino. A comemoração logo ganhou tom de urgência. Todos corriam e gritavam para o médico e a câmera lenta dentro de João Maia fora ativada. Os sons pareciam que estavam dentro de um aquário, longe e lento. Espesso. Uma névoa passou a cobrir seus olhos. Não queria ver, mas já sabia. Sidcley estava morto.

IV

Sidcley fora declarado morto assim que chegou ao hospital, mas seu corpo já deixara de ter vida há muito tempo. Houve uma investigação, claro, já que um menino saudável, sem histórico de doenças cardíacas na família, jogador de um grande time de futebol, havia morrido em campo. Mas o resultado, após tanto tempo de investigações, foi mesmo morte acidental por sufocamento,
devido à grande quantidade de pessoas em cima dele na hora da comemoração. Uma costela quebrada e um ombro deslocado – e não haviam sido a causa de sua morte, só um mau jeito como os colegas caíram em cima dele.

Todos se mostravam consternados diante das câmeras, do roupeiro ao treinador, passando por todos os seus colegas de equipe. Todos falaram muito bem de Sidcley, do quanto ele era querido na concentração e nos campos. Com a polícia, a história foi a mesma: menino bom, querido por todos, vai deixar saudades, blábláblá.

Mas eles sabiam que era mentira. Ninguém nunca saberia o que de fato aconteceu, só eles. Só eles sabiam da força que colocaram ao pular nele, ao deixar que ele sufocasse. Ninguém planejou, mas todos eram assassinos. Mataram o Sidcley só porque não gostavam dele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças