domingo, 26 de fevereiro de 2012

CONTO


Em família





Todos reunidos em volta da cama com seus olhos abertos resplandecentes de esperteza, todos fechando em círculo as saídas com seus corpos grandes, à espera. Um muro de músculos e hálitos plantado em sua volta. Eles sabiam de tudo. Então eles sabiam de tudo. Completaram suas idades, desde o início, sabendo de tudo, mas sem coragem de revelar que sabiam.


Lívia, de frio, encolhe-se por baixo do edredom e puxa o lençol para esconder o rosto. A luz, ah, esta luz a incomoda. A luz e os olhos que a vida toda se mantiveram mudos, enquanto espreitavam cada canto e seus segredos. Três pares de olhos amoitados ali mesmo, dentro de casa, da sua casa, a caverna que julgava indevassável.

Por que fingiam acreditar, se já sabiam, então, toda a verdade?

O desejo de sumir num desmaio está preso à língua como um frio, um frio grosso que a imobiliza. Não há mais o que dizer, e mesmo a confissão não a pode redimir ou salvar da vergonha. Seus filhos, então, podem fingir, mas é impossível não perceber acusação em seus olhos. E por que tanta luz, quem teve a idéia desta iluminação exacerbada?

No quarto, no ar do quarto, respira-se o cheiro do suor que os lençóis absorveram enquanto a febre ainda renitia. Ninguém ousaria acusá-la, naquele entanto, com a morte em revoada silenciosa ali no pequeno espaço entre o céu e a terra. Antes embarcar naquele coche escuro e definitivo a sofrer as agruras da vergonha.

Beatriz, a sua Beatriz, principalmente ela, deve orgulhar-se, neste momento, da vitória. No transcorrer de seu crescimento, todos os dias, quantas e quantas palavras foram-se acumulando, que agora jazem inúteis no monturo das mentiras! Não foi o que disse o brilho de seus olhos pontiagudos tão logo ela chegou? Não, jamais poderá dirigir-lhe novamente qualquer palavra, pois tornaram-se todas suspeitas de inutilidade.  

O frio entra pelos interstícios abertos entre o edredom e o lençol. Lívia sente-se desprotegida, mesmo procurando prender com pés e pernas a orla de sua coberta. Ela se concentra na operação com muito método, prendendo primeiramente os panos com firmeza por baixo dos calcanhares; manobrando em seguida para que as pernas estiradas enrolem-se nas laterais, com cuidado para que não restem frinchas por onde possa passar o frio, e com ele a vida que o marido e os dois filhos trouxeram-lhe em oferta. Ela os quer fora, livres de seu contato e do suor que cheira mal. Pensa apenas em ficar só, seu corpo e suas culpas, para poder descansar.

Muitas vezes tivera de afastar as suspeitas sobre o comportamento de Armando. Ele, o mais quieto, quem mais examinava os cantos da casa, principalmente os cantos que luz nenhuma conseguia iluminar. Armando observava a teia de uma aranha como se estivesse pensando em lhe copiar o modelo. Atento. O último espaço de uma gaveta, a paisagem cheia de penumbra por trás da geladeira, a poeira acumulada por cima dos armários, de tudo tinha ciência, mas uma ciência calada que lhe vinha morrer no alto da garganta. Atrapalhava-se um pouco ao ser surpreendido em alguma empresa de que só ele tinha conhecimento. Mas isso por pouco tempo. Mudava de posto, escolhia atividade diferente, e nada se arrancava de suas descobertas.

  Sua respiração úmida e quente é um barulho ritmado que o lençol abafa subindo e descendo. O ar, cada vez mais insuficiente. Pensa em mostrar o rosto debaixo de toda aquela iluminação, entretanto reluta, pois não quer suas lágrimas expostas como um pedido de piedade.

Finalmente, o que já vinha temendo desde que se formaram em barreira ao seu redor. Leonardo senta-se à beira da cama e uma de suas mãos enfia-se por baixo das cobertas à procura de Lívia. Ela encolhe-se mais, agarrando-se aos próprios ombros e enfiando o queixo entre os seios e a interseção dos braços em cruz. Violada a vida inteira em suas intimidades pela própria família, sem que o soubesse, não permitiria, agora, contato algum. A cama, Leonardo, a cama é meu último reduto. Não tente, meu pobre marido, dar prosseguimento a esta comédia. Por que a deixaram pensar estes anos todos que estava a salvo da bisbilhotice alheia? Que os filhos se fechassem mudos, ainda relevava. Chegava quase a entender. Ah, não, mas Leonardo, com seu ar sempre alheado de tudo, colhendo da vida apenas recortes e beiradas, Leonardo não pode ter o silêncio perdoado.

Ouve o cochicho dos filhos, percebe algumas sílabas isoladas e consegue apenas supor que seja ela mesma o assunto dos dois. Então se aflige ao concluir que não é mais do que um objeto familiar, um objeto neutro já, e em cuja presença não é preciso manter qualquer discrição. Sente raiva na garganta entupida de impotência e nas veias da garganta que se estufam de um sangue grosso de veneno. E por que não vão embora, não vão conversar sobre o que quiserem à beira de seu próprio túmulo?

Quando os via  boca no ouvido,  escondendo-se na edícula ou rente ao muro nos fundos do quintal com aquele riso engolido de crianças, como não suspeitar de que falavam com maldade sobre a mãe, como pudera ser tão tola e por tanto tempo? Se encontrava suas coisas remexidas no closet, atribuía-se com a maior facilidade a culpa do esquecimento. Claro, em escaninhos seus ninguém  podia mexer. E todos sabiam disso.

Perdão, perdão, perdão, mas quem disse que eu queria perdão, se o perdão é sempre jogado de cima para baixo? O ar vai ficando cada vez menor debaixo do lençol, e Lívia abre uma janela que dá para a parede, onde ninguém e por onde recebe o frio que lhe vem do exterior. Todos eles, que te perdoamos. O perdão é forma de domínio. Eu, perdoada para arrastar comigo uma dívida pelos dias que me restam! Ah, não, só o ódio me salva.

Pela janela recém-aberta, Leonardo consegue enfiar a mão sorrateira, talvez insidiosa, e encontra o rosto molhado da esposa, que não tem mais o que encolher. Lídia grunhe incomodada com a tamanha aspereza dos dedos em suas pontas quase cegas. As pálpebras pressionam ainda mais seus olhos escondidos, em desespero por causa de sua impotência. Com dedos nervosos, o marido insiste no perdão, mas o perdão não purifica. Por que nenhum dos três a ofende com imprecações  e terríveis vitupérios para que ela finalmente possa desvencilhar-se da culpa? Por que no momento extremo e vencidos todos os medos não a deixaram ir-se embora?

Podia ser que Beatriz fosse ao mesmo tempo a mãezinha de suas bonecas a brincar na sala por trás de poltronas e a bruxa dissimulada conhecedora de graves segredos? Como era então a infância, que ainda incompleta, transformava-se em veneno! Ah, Beatriz, que aos onze anos já falava sem esmorecimento sobre os dias previstos de sua menstruação! Menina-mulher, que se escondeu todos estes anos com o segredo colado nas paredes de sua boca. Com quem trocava, sua Beatriz, com quem se aliviava do peso deste segredo e sua sordidez? Impossível que fosse com o irmão, dois anos mais novo e, como o pai, calado, movendo-se sorrateiro por onde houvesse menos claridade.

Por baixo do lençol, Lívia sente que os filhos também se aproximam A cama range sob o peso dos dois. Finalmente, depois do perdão, vêm os três para colher o resultado: os restos de uma mulher a quem trouxeram de volta à vida com o propósito de perdoá-la para sempre, para que nunca mais perca as marcas sujas de seu rosto.




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