sábado, 11 de fevereiro de 2012

NOITE (9)

NO VELÓRIO

Os trêrs companheiros abandonam a rua das prostitutas. O Mestre diz que tem um compromisso muito sério às onze e meia da noite.

Pág. 37 - "Entraram numa rua mais respeitável, a algumas quadras do beco, e o corcunda sugeriu que tomassem um táxi e fossem para o centro da cidade às procura dum cabaré. O mestre consultou o relógio: dez e um quarto.

- Tenho um compromisso de honra às onze e meia. Antes disso não podemos pensar em divertimentos. Primeiro a obrigação!"

A principal ironia da novela são as sentenças morais enunciadas por um crápula como o mestre.

Pág. 38 - "O Desconhecido voltava-se frequentemente para trás, mas não conseguia avistar o homem de branco.
De repente o corcunda soltou uma exclamação e estacou, apontando para uma janela iluminada, no outro lado da rua.
- Um velório!
Os outros olharam. Era uma meia-água de aspecto pobre e tristonho. À sua frente, na calçada, homens fumavam e conversavam em pequenos grupos."
(...)
- (...) Vamos entrar. Temos ainda uma boa hora antes do seu compromisso, mestre."
(...)
"- O nanico sempre teve paixão por velórios. Diz que não há nada no mundo mais instrutivo e edificante que um velório. Nem casamento! Talvez o diabo tenha razão. Allons!"
(...)
"Mal puseram o pé na calçpada, descobriram-se com todo o respeito, murmurando graves boas noites para os homens que ali se encontravam. (...) O homem do cravo e o anão foram distribuindo abraços. O Desconhecido ouviu a voz de araponga dizer: 'Sentidas condolências!' "
Pág. 39 - "As duas aves noturnas não tiveram dúvida: meteram-se pelo estreito corredor entupido de gente - com licença! com licença! - e foram abrindo caminho na direção do fundo da casa."
(...)
"Por fim conseguiram entrar os três no quarto da viúva, ainda mais sombrio que o resto da casa."
(...)
"O mestre aproximou-se da cama, explicou à viúva que fora amigo do falecido, e, com sua voz de paina e seu jeito de homem bem-educado, começou a fazer a apologia do morto, exaltando suas virtudes..." (...)Quando o homem da flor terminou o discurso, a viúva desatou num choro convulsivo e a filham numa crise histérica, rompeu a rir, a rir perdidamente, e a rolar na cama, enquanto as comadres atarantadas apelavam para o mestre, pedindo que ele fizesse alguma coisa. Foi, porém, o corcunda quem tomou a providência mais eficaz. Ajoelhou-se na cama, sujeitou a rapariga eplos pulsos e esbofeteou-a, uma, duas, três, quatro vezes."
Pág. 40 - "De súbito a mopça cessou de rir, desatou num choro solto mas manso, e afundou o rosto no travesseiro. O mestre então esclareceu:
- Em casos como esse, o tratamento é exatamente o que o meu amigo aplicou, por mais brutal que pareça."
(...)
"O mestre pousou a mão afetuosamente no ombro do outro.
- O senhor não precisa me dizer como era o falecido, porque eu o conheci melhor que ninguém.
- Então era amigo dele?
- Amicíssimo.
(...)
- É engraçado. Nunca vi o senhor nesta casa.
- Veja o amigo como é a vida! No entanto fui companheiro de infância dele...
- De infância? - repetiu. - O finado tinha sessenta e três anos e o senhor é ainda tão moço..."
Pág. 42 - "- Olhe para esses homens e mulheres - continuou o homem do cravo vermelho. - Nenhum deles está completamente vivo. Todos já começaram a morrer. essa pobre gente não só compra coisas a prestações como também morre a prestações."
Pág. 43 - "Uma mosca solitária passeava pela cara do morto. Fez alto por um instante sobre os lábios dessangrados, subiu até a ponta do nariz, hesitou uma fração de segundo, como se fosse penetrar numa das narinas, depois atravessou o ´^oncavo da face, quase desapareceu no sulco duma ruga, fez nova pausa sobre um dos olhos e finalmente parou no centro da testa, a mexer freneticamente as pernas. O Desconhecido olhava com fixidez para o inseto, como se a sua trajetória na cabeça do defunto fosse a coisa mais importante do mundo.
- O amigo nunca ouviu dizer que é bem prossível que as moscas sejam anjos? É uma hipótese bastante aceitável, além de poética."
(...)
"Houve um momento em que o Desconhecido teve a impressão que seu crânio estalava de dor. a sede lhe voltara, intensa, de mistura com um desesperado desejo de ar livre. Olhou em torno, como a buscar socorro, e o que viu no vão da janela que dava para a rua, fez-lhe o coração pulsar descompassado. O homem de branco meteu a cabeça para dentro da sala, olhou longamente para o morto, depois para o Cristo e fez o sinal-da-cruz. Em seguida fitou o Desconhecido, sorriu, inclinou de leve a cabeça e recuou, desparecendo entre os vultos da calçada."
Pág. 44 - "- Sejamos honestos e realistas - soprou o homem do cravo ao ouvido do outro. - Você então acha que um deus que não pode defender-se a si mesmo e deixa crucificar-se será capaz de fazer alguma coisa por nós? Você acredita nessa balela de céu e eternidade?
O anão murmurou:
- O céu é aqui e agora. Você está com a carteira recheada e a noite mal começou."
(...)
"- Olhe só aquele idiota. Deve ter sido funcionário exemplar, pai amantíssimo, prims inter pares como marido. Votou sempre com o governo, jamais cometeu adultério, ia à missa todos os domingos e usava balandrau nas procissões. Era caridoso e possivelmente fez tudo para não desejar a mulher do próximo, contra o qual jamais deu falso testemunho. De que lhe serviu tudo isso? Morreu e já está apodrecendo.
O corcunda terminouy o retrato, que correu de mão em mão, sob respeitosas exclamações de admiração, indo parar no quarto da viúva que, ao vê-lo, teve outra crise de choro.
E desse momento em diante as duas aves noturnas tomaram conta do defunto, do velório e de todos quantos ali se encontravam"
Pág. 45 - "(...) Todos faziam questão de aproximar-se daquele senhor alto e bem vestido, de maneiras tão fidalgas e palavra tão fácil."
(...)
"- Ainda que mal pergunte, o senhor é médico?
O mestre sorriu.
- Meu amigo, sou um espírito eclético. Procuro saber um pouco de tudo."
(...)
"O corcunda apareceu com uma garrafa na mão, interrompendo o diálogo.
- Veja o que eu descobri, mestre! Um litro de vinho. É uma pena que não dê para todos...
O homem do cravo vermelho fez um gesto bíblico e recitou:
- E, faltando vinho, a mãe de Jesus lhe disse: 'Não tem vinho'. Disse-lhe Jesus: 'Enchei dágua essas talhas'. - Soltou uma risada e exclamou: - Mas o tempo dos milagres passou! E Jesus de Nazaré está morto, meus senhores. Nanico, o remédio é você beber sozinho."
(...)
"O mestre olhou o relógio:
- Quase onze horas. A procissão vai continuar."
Pág. 47 - "- Pois é, doutor, não ouviu falar? Foi uma coisa bárbara.
- Onde? Quando?
- Hoje, na cidade alta, ali por volta do anoitecer.
(...)
- Pois uma mulher foi encontrada morta em cima da cama do casal, o lençol todo ensanguentado, um horror...
- Tiro?
- Facada."
(...)
"- E o assassino?
Um dos velhotes encolheu os ombros:
- Não se sabe. Desconfiam que foi o marido, que desapareceu."
Pág. 48 - "Caminharam por algum tempo em silêncio, na rua agora quase deserta. O mestre~, que não largava o braço do prisioneiro, murmurou-lhe ao ouvido:
- O seu colarinho está manchado de sangue."
(...)
"O mestre pareceu perder a paciência.
- Confesse logo. Por que matou sua mulher? Ciúme? Encontrou-a na cama com outro homem? Hem? Hem?
- Meu Deus - balbuciava o Desconhecido - não é possível!
- Por que não há de ser possível? Tenho no bolso o seu lenço manchado de sangue... vamos terminar esta farsa!"
Pág. 49 - "- Nossa noite mal começou - resmungou o corcunda. - Já que não podemos aliviar a consciência desse assassino, vamos ao menos aliviar-lhe a carteira.
- Levante-se - ordenou o mestre. - O tempo urge. Não posso faltar ao meu encontro. Noblesse oblige. Vamos, de pé.
O desconhecido obedeceu,m e os três se puseram em marcha."
(...)
"Andaram mais uma quadra e chegaram a um largo iluminado, cheio de gente e música.
- Uma quermesse! - exclamou o anão, já alvorotado.
- Onze horas! Você sabe que não costumo chegar atrasado aos meus encontros.
- Mestre, só vinte minutos! - suplicou o nanico.
(...)
"Era uma quermesse suburbana, pobre e evidentemente já nos últimos dias, talvez nas últimas horas."
Pág. 50 - "Andava no ar um cheiro de frituras que vinha das tendas onde se faziam pastéis, churros e pipocas."
(...)
"- A negra-mina me avisou que hoje temos um bom candomblé na casa duma mãe-de-santo, minha conhecida."
(...)
"O homem do cravo inclinou- para o Desconhecido e explicou:
- O nanico interessa-se por todos os cultos. Não só frequenta os templos católicos e protestantes como também e principalmente os terreiros de macumba..."
(...)
"- O móvel do crime não foi ciúme, mas o roubo. Correto? Hem? Responda!
- Não me lembro."
Pág. 52 - "O Desconhecido avistou um padre que passeava lentamente, de mãos às costas, por entre as tendas."
(...)
"- Padre, me acuda. Eles tomaram conta de mim."
(...)
Pág. 53 - "- Senhor vigário, queira desculpar...
Enlaçou carinhosamente a cintura do Desconhecido e entregou-o ao corcunda. Quando eles se afastaram, murmurou:
- O nosso amigo não está bem das faculdades mentais... "
(...)
"O Desconhecido, que olhava para o carrossel, avistou o homem de branco montado num dos cavalinhos de pau. (...) Depois deixou-se levar pelas duas aves noturnas, mas sem afastar os olhos do carrossel..."
Pág. 55 - "De novo começou a girar o carrossel. Uma valsa inundou suavemente o ar. O cavalo baio galopava solitário."

Talvez sejam estas as mais longas sequências de cenas da novela. Além da leitura do plano do conteúdo (o domínio, o bem, o homem de branco, que acompanha sem intervir, e o mal, representado pelos dois amigos) deve-se observar no plano da expressão o modo como se estrutura a novela. Foram diversas as cenas (no parque, no café-restaurante, na zona da prostituição, no velório, na quermesse) sem que uma determinasse a próxima ou fosse determinada pela anterior. Esta sequência de cenas justapostas é que configura a classificação da obra como novela.

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