domingo, 19 de fevereiro de 2012

QUESTÕES DE ESTÉTICA LITERÁRIA

Texto I


            Falei-lhe há pouco da excentricidade de certos aumentativos. Usa-se no Ceará um gracioso e especial diminutivo, que talvez seja empregado em outras províncias; mas com certeza se há de generalizar, apenas se vulgarize.

            Não permite certamente a rotina etimológica aplicar o diminutivo ao verbo. Pois em minha província o povo teve a lembrança de sujeitar o particípio presente a esta fórmula gramatical, e criou de tal sorte uma expressão cheia de encanto.

            A mãe diz ao filho que acalentou ao colo: “Está dormindinho”. Que riqueza de expressão nesta frase tão simples e concisa! O mimo e ternura do afeto materno, a delicadeza da criança e sutileza do seu sono de passarinho, até o receio de acordá-la com uma palavra menos doce; tudo aí está nesse diminutivo verbal.

            Entretanto, meu ilustre colega, suponha que em algum romance eu empregasse aquele idiotismo a meu ver mais elegante do que muita roupa velha com que os puristas repimpam suas idéias.

            Não faltariam, como de outras vezes tem acontecido, críticos de orelha, que depois de medido o livro pela sua bitola, escrevessem com importância magistral: “Este sujeito não sabe gramática”. E têm razão; gramática para eles é a artinha que aprenderam na escola, ou por outra, uma meia dúzia de regras que se afogam nas excessões.

            Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos do nosso povo, havemos de falar-lhe em sua língua, com os termos ou locuções que ele entende, e que lhe traduzem os usos e sentimentos.

            Não é somente no vocabulário, mas também na sintaxe da língua, que o nosso povo exerce o seu inauferível direito de imprimir o cunho de sua individualidade, abrasileirando o instrumento das idéias.

(José de Alencar. Posfácio de Iracema. In: Obras completas. Vol. 4. Rio de Janeiro: J. Aguilar,  1964, pp. 965-6.)


Vocabulário e Notas:

particípio presente: gerúndio

idiotismo: expressão geralmente típica da linguagem popular ou familiar

repimpar: empanturrar

inauferível: inegável


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