Papel em branco
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé
era mais bonita que a de Robinson Crusoé
Carlos Drummond de Andrade
Matheus Pichonelli
A luz se apagou e só à frente era possível ver a tela
brilhando no azul esverdeado, única
fresta para sonos
distraídos. Eram trinta alunos, e a maioria não relutava em abaixar as cabeças,
aconchegadas nos nós que fazíamos com nossos próprios agasalhos – que, em casa,
chamávamos “abrigo”. Eram abrigos, de fato, para nosso sono, às sete da manhã,
de uma segunda-feira imprópria para poesias. Em instantes, os insones acendiam
velas nos celulares, e disparavam torpedos para quem estava do lado de fora.
Fingindo que não se importava com a dispersão, o professor
sentou-se ao meu lado para ficar mais perto da TV, o que me causou certo
desconforto: ele realmente incomodava com sua empolgação, ele e sua mania de
nos condicionar as atenções a cada cena. “Essa é maravilhosa. Reparem nos
olhos, na câmera, na fala. Maravilhoso”.
Poucos dali estavam interessados em dramas, filmados em
países desconhecidos; mas ao fim da aula, descreveu, numa explicação econômica,
qual seria o tema do próximo encontro: relatar, em dois minutos, a cena de
nossas vidas que mais nos marcaram até ali.
Houve silêncio em nossos olhos, e alguns se pegaram a corar.
O desconcerto se espalhou como contágio, sobretudo sobre nós, meninas. No
filme, os alunos de poesia se concentravam no exercício e não eram sequer
capazes de conter um olhar de abandono ou uma lágrima queixosa ao relembrar momentos
que deveriam ser só deles, de mais ninguém. Ninguém de nós, afinal, tinha
vocação para poeta, e os bocejos que se seguiram ao final do filme bem poderiam
falar por todos.
Foi quando, ao fim da orientação, professor se pegou a dizer
suas histórias. Os cabelos despenteados, a franja na fronte, um jeito blasé
naquela jaqueta escura que lhe conferia tanta empáfia não seguraram o pânico
que se instalou naquela classe ao ouvi-lo falar. Contou que, quando deixou o
cinema, pensou em trazer o mesmo filme para nós, seus alunos, justamente para
propor o mesmo exercício.
Disse que passou dias numa nuvem de ideias para que
encontrasse, nele mesmo, a cena mais marcante de toda uma vida. Pensou no
nascimento do filho; no título de 99; no dia da formatura, e nada dizia mais
sobre ele do que um certo fim de tarde, na casa da avó. Não se lembrava a
idade, nem o ano, nem a ocasião; mas se lembrava de um dia de chuva, quando
ouviu o avô dizer que tinha vontade de chá de erva cidreira. Havia um muro e
havia um quintal, e para uma criança havia um universo desencontrado entre as
hortaliças que se espalhavam nos fundos da casa. A avó, recém-operada dos
joelhos, pediu ao menino que fosse até o fundo colher uns “pedaços de mato” –
era como diziam. Deu-lhe uma faca pequena, sem ponta; emprestou uns chinelos, e
o colocou para fora. No caminho, o menino olhava o céu que ameaçava desabar, e
uma infinidade de plantas e arbustos que não permitia que identificasse se eram
ervas ou gramas para o chá que conhecia apenas por sachês. Caminhou pela terra,
o chinelo já afundado na lama da chuva anterior e, como beija-flor, foi se
aproximando de todas as ervas, daninhas ou não, que se assemelhassem com a
descrição feita pela vó; até que o cheiro das ervas cidreiras lhe tomou as
narinas e a alma. Voltou para casa com uns ramos à mão, o cheiro que nunca lhe
abandonou. Sem dizer palavra, a velha tomou em mãos a encomenda, se dirigiu à
cozinha e antes que o vapor tomasse conta da casa, uma nuvem do tamanho do
universo cuspiu a primeira rajada, seguida de outra, e a claridade; a chuva
veio tão forte daquela vez que parecia inapropriado ignorá-la. Foram, assim,
assistir de camarote ao festival de raios e reveses contemplado por uma janela
aberta, enorme, à espera dos novos tempos.
A dor com que o professor relatava tudo aquilo fisgou nossos
amigos àquela altura acordados. Não sei por eles, mas eu, por mim, fui tomada
por um pânico de não ser capaz de recolher em mim qualquer história que valesse
um relato, um conto de dois minutos que fosse, como aquele. Não havia em minha
vida algo que preenchesse uma folha em branco, a não ser tudo o que todos um
dia viveram; não havia singularidade em mim que me destoasse de uma mancha
uniforme de uma multidão de uniformes. E ver o professor contar um caso tão
recalcado, patético até, foi o golpe de misericórdia em minhas misérias.
Eu tentava, mas , diferentemente do professor, não tinha em
canto algum da memória qualquer quintal com ervas cidreiras; minha avó por
parte de mãe havia morrido de câncer assim que eu nasci, e meu avô jamais foi
admitido de volta em nossa roda familiar desde que anunciou o casamento com uma
jovem vizinha menos de seis meses após o enterro. Por parte de mãe, tinha ainda
dois avós ensimesmados e silenciosos, de quem não recebia permissões sequer
para abrir a porta da geladeira da cozinha; uma cozinha fria de uma casa vazia,
sem memória para mim, a não ser os tapas que meus pais me davam quando o carro
estacionava em frente daquela casa, e eu me agarrava com força no banco
dianteiro para que ninguém me tirasse dali.
De meus pais tampouco poderia lembrar uma cena que coubesse
em dois minutos. Eram jovens demais, até para mim, e tão distantes que pareciam
confiantes na história de que uma separação, para uma criança, era só uma
separação. Lembro da despedida de meu pai, a última noite em casa; uma mãe
insone e seu café na sacada; um marido dormindo no sofá, rindo as últimas
risadas de um seriado infantil, e um par de malas à espera do dia seguinte;
horas depois, o prato a menos na mesa, e a minha descoberta de que, não
importava o que vivesse dali em diante, sempre haveria um todo que não se
completaria; eram, então, apenas despedaços, e mesmo a mais infantil das
felicidades estava contaminada pela falta. A minha incapacidade de reunir num
mesmo lugar todos os que eu amava; foi assim quando me tiraram do útero,
quente, e me jogaram para um mundo de cores mas anêmico; depois, quando
cortaram o umbigo que me ligava ao que me trazia ao mundo; depois, quando me
tiraram daquela casa; e, quando vi, quando a mãe fazia o bolo de cenoura, não
eram seus pedaços que eu saboreava, mas a pergunta do que faria meu pai,
estivesse onde estivesse: se teria também em mãos um pedaço do bolo que mais
gostava. E quando fazia frio na casa dele, e ele me levava para dormir na sala,
na frente da TV, com todos os agasalhos – “abrigos” – e cobertores, não era
calor ou proteção que sentia, mas medo de que, em algum lugar do mundo, a mãe
sentisse frio.
-O que vai contar na frente da sala, Aninha?
A Nádia me perguntava, e eu só conseguia pensar que minha
vida era só uma folha em branco inenarrável; incompleta e desinteressante.
-Eu acho – seguia a Nádia – que a gente devia era contar a
memória do que não aconteceu. Planos. Eu ficaria horas lá na frente dizendo
tudo o que quero e o que não quero. Vou dizer que vou estudar química,
trabalhar na indústria farmacêutica, inventar a cura da Aids, do câncer, das
mazelas da alma e dos amores; vou contar que vou chefiar equipes; que vou
viajar o mundo contando feitos e colhendo especializações. Vou me casar com 23
anos com um gerente de fábricas que vai me dar dois filhos de olhos verdes e
que, antes dos 40 anos, vai se mudar comigo para uma casa de campo. Vamos
montar uma pousada e uma adega, receber os amigos e compor músicas. O meu futuro
é mais brilhante do que tudo o que sou capaz de me lembrar.
A Nádia não conferia os meus silêncios, e mal se dava conta
de que, por mim, a vida futura parecia ainda menos atraente. Em uma semana,
tudo o que passou pela minha cabeça é que só valeria a pena um relato na frente
da sala se meu corpo fosse esmagado por um caminhão que me tirasse a vida a
poucos metros da frente da escola, onde minha angústia se calaria para sempre.
No dia seguinte, todos estavam inquietos, mergulhados nas
próprias memórias. Cido dizia estar decidido: ia falar da primeira vez que foi
a um estádio, e viu de perto o Marcelinho Carioca, que arremessou para ele a
camisa ao fim do jogo; o futebol pareceu um bom tema, e em instantes o João
Pedro se lembrou que tentou cobrar escanteio uma vez e a bola entrou direto no
gol; disseram que o nome era “gol olímpico” e, de tão raro, deveria valer dois
gols; Marta se lembrava de quando levou o Pierre atrás da escola: ele pediu um
beijo por carta e a convidou para o encontro; ela se encheu de batom vermelho,
da mãe, e só soube que o menino tinha alergia quando viu boca e pescoço do
rapaz pintados feito palhaço; o menino que caiu no choro, com vergonha de
voltar para a aula – mas logo se deu conta de que isso só a fazia rir, e se deu
conta de que os momentos alegres não eram momentos marcantes; aquilo não a
marcara, falamos. E ela prometeu outro tema.
Dércio, então, se pegou a escrever seus dois minutos:
lembrava da primeira vez que ouviu “Música para Acampamento”, da Legião; estava
numa brinca no quintal da Gabriela, os pares se formando pra dançar, quando o
Hugo pôs “Pais e Filhos” para tocar. Havia um mundo tão grande a ser descoberto
que o Dércio só pensava na letra, que hoje diz achar besta, mas que repetiria a
vida toda, em caderno, carteiras, camisetas e decorações: “É preciso amar as
pessoas como se não houvesse amanhã”. E só Deus sabe o quanto rimos quando ele
terminou o relato, que só emocionava o seu autor.
Na volta para casa, a Nádia parecia querer falar alguma
coisa:
-Aninha, acho que sei o que vou contar. Passei o dia fazendo
um pente-fino das minhas coisas, e quando vi, chorava. Chorava que nem uma
filha da puta lembrando uma coisa que me aconteceu. Mas faz tempo.
E a Nádia se pegava a contar uma história de mais de dois
minutos que, ao fim, colocou nós duas a chorar: uma velha magricela que passava
na rua da sua casa recolhendo lixo, coisas que as famílias jogavam fora e que
ela podia higienizar, reciclar, revender. A casa ficava ao fim da rua, e até
que o percurso fosse completado, o velho carrinho se enchia de inutilidades;
pedaços de madeira, papelões rasgados, caixas amareladas, livros antigos,
gibis, lápis e borracha. Ao fim do percurso, estacionava na casa dela, onde era
recebida, a contragosto, para um copo de água mendigado. A mãe se pegava a
conversar com a mulher, que não economizava afagos à criança. Mas a Nádia tinha
medo; mais: tinha nojo de ver uma velha banguela dentro de casa, as pernas
arqueada, tomada em pelos; a mulher que nunca se casou, que deixava o cabelo
solto, branco, pela cara lambida; o rosto entortado em linhas incertas,
areadas, tomadas por buracos. De doce só a voz, pausada, as educações e
muito-obrigados.
“Amanhã é aniversário dela”, dizia a mãe. “Meus parabéns,
Nádia”, no que respondia.
A pobre velha. Antes que viessem os abraços e cumprimentos,
a Nádia se trancou no banheiro; no tédio, tomou o tubo de pasta de dente
vermelha, e pintou o rosto; disse que ia brincar de índio, mas ficou com as
faces queimadas pela reação: tudo para não ver aqueles lábios secos tocarem
nela em abraços. Ficou ali trancada até a mulher ir embora.
No dia seguinte, a festa: as bexigas espalhadas, os discos
numa vitrola que levaram para o jardim; o bolo da Minie, os papéis-guardanapos
azuis e cor-de-rosa, lembranças: línguas de sogra, chapéus, e a espera pelos
padrinhos, o triciclo, as bonecas, os bambolês, os rolemans. E a velha, de
novo, catando as sobras, e pedindo água? Não. Veio, dessa vez, sem o carrinho,
e em sorrisos; trazia o que encontrava no dia anterior e recolhia: uma bola vermelha,
suja e bem lavada, que mal quicava. A velha que se lembrava e, sem graça e sem
jeito, passava por lá para enfim os cumprimentos: a Nádia com a bola, os olhos
silenciosos, de quem se agarrava àquilo, àquela manifestação.
-Um copo de água, dona Nena? Hoje temos guaraná. Não quer
ficar?
Queria não; se fora; a velha: tinha um sobrinho que vivia
com ela, muitos anos atrás; e que fora embora. Em troca, ganhara todas as
crianças daquela rua, de quem não esquecia os aniversários. A Nádia, contando
tudo aquilo, em longos mais de dois minutos, o lápis nos olhos já castigados de
tanto chorar; e soluçava, e se benzia, e dizia que na vida não conhecera outra
santa nem nada tão bonito. A dona Nena.
-Me tranquei no banheiro, fiquei lá o aniversário todo;
abraçada àquela bola vermelha, àquele gesto.
A Nádia falava aquilo, e eu de novo chorava sem saber se
chorava por ela ou por mim. Não tinha santas em minha vida, e as festas de
aniversário eram só um exercício de logística; os pais que não podiam dividir
as mesmas mesas; e que uma hora se encontravam, e se pegavam a ladrar, aquele
inferno.
Não tinha quintal com erva cidreira em nossa casa; nem tinha
avós nem bola de aniversário. Tinha, que me lembre, as tardes livres na loja
onde trabalhava a minha mãe, antes desempregada pela solteirice. Foi bater na
Iracema, loja de roupa infantil; e eu saía da escola, ia com a mãe para o
shopping. Foi lá a minha infância: não na rua, não na mangueira vizinha, não
nos jogos de calçada; ficava parte da tarde quieta, dormindo nos sacos de roupa
do depósito, vendo a mãe atender as mães de outras crianças. Me vestiam, me
fitavam, faziam as experiências com as roupas de outras estações; e eu só via o
sol filtrado a vida toda pelos janelões dos corredores. Nossa loja ficava ao
lado de uma loja de armas de caça e um restaurante. Eram os cheiros que me
marcavam: os corredores limpos, ar-condicionarizados, os bolinhos que fritavam
ao fim do dia, e roupas novas, sacos de roupas novas que recolhiam meu sono num
depósito do andar de cima. Correr ali não se podia; e a mãe minguava as fichas
para o fliperama; e bem avisava que ali se concentravam os malandros, os de
boné, os rueiros que iam filar ficha dos meninos longe dos pais. Tinha a loja,
a poucos metros dali, de importados: as roupas esporte, as bolas de basquete,
as luvas de futebol. Via, olhava os bonecos, os hominhos e as tartarugas-ninja;
sabia desde quando estavam ali na demonstração. E ia para as lojas Americanas,
via a fila de velhas para comprar pão, e um molho que vendiam ao lado da padaria,
que às vezes a mãe comprava e levava para nossa casa nova, que não tinha mesa
de cozinha, só um balcão para dois. Naquelas tardes, tocava, o dia todo, uma
música alegre de tão triste. O dia todo, a certa hora do dia, tocava; mas
ninguém se lembra dela quando conto. O shopping também não existe mais. A loja,
faz tempo, se mudou. Só o balcão para dois da cozinha segue no mesmo lugar.
Os amigos me falam de campos, de bolas e de quintais; de
noites de lua e chácara; mas eu só me pego a ter saudade quando lembro de um
corredor e da loja de armas; do cheiro de lugar fechado, dos sacos plásticos e
da música que mandava seguir em direção ao oeste – e que hoje ninguém se
lembra. É tudo do que me orgulho, e ainda não tenho ideia que parte vou ter de
omitir quando o professor souber que não há em mim uma linha capaz de fazer
inveja a Robinson Crusoé.
de enternecer...
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