sexta-feira, 14 de setembro de 2012

CONTO ALHEIO

Papel em branco
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé
Carlos Drummond de Andrade
 Matheus Pichonelli

A luz se apagou e só à frente era possível ver a tela brilhando no azul esverdeado, única

fresta para sonos distraídos. Eram trinta alunos, e a maioria não relutava em abaixar as cabeças, aconchegadas nos nós que fazíamos com nossos próprios agasalhos – que, em casa, chamávamos “abrigo”. Eram abrigos, de fato, para nosso sono, às sete da manhã, de uma segunda-feira imprópria para poesias. Em instantes, os insones acendiam velas nos celulares, e disparavam torpedos para quem estava do lado de fora.

Fingindo que não se importava com a dispersão, o professor sentou-se ao meu lado para ficar mais perto da TV, o que me causou certo desconforto: ele realmente incomodava com sua empolgação, ele e sua mania de nos condicionar as atenções a cada cena. “Essa é maravilhosa. Reparem nos olhos, na câmera, na fala. Maravilhoso”.
Poucos dali estavam interessados em dramas, filmados em países desconhecidos; mas ao fim da aula, descreveu, numa explicação econômica, qual seria o tema do próximo encontro: relatar, em dois minutos, a cena de nossas vidas que mais nos marcaram até ali.

Houve silêncio em nossos olhos, e alguns se pegaram a corar. O desconcerto se espalhou como contágio, sobretudo sobre nós, meninas. No filme, os alunos de poesia se concentravam no exercício e não eram sequer capazes de conter um olhar de abandono ou uma lágrima queixosa ao relembrar momentos que deveriam ser só deles, de mais ninguém. Ninguém de nós, afinal, tinha vocação para poeta, e os bocejos que se seguiram ao final do filme bem poderiam falar por todos.

Foi quando, ao fim da orientação, professor se pegou a dizer suas histórias. Os cabelos despenteados, a franja na fronte, um jeito blasé naquela jaqueta escura que lhe conferia tanta empáfia não seguraram o pânico que se instalou naquela classe ao ouvi-lo falar. Contou que, quando deixou o cinema, pensou em trazer o mesmo filme para nós, seus alunos, justamente para propor o mesmo exercício.

Disse que passou dias numa nuvem de ideias para que encontrasse, nele mesmo, a cena mais marcante de toda uma vida. Pensou no nascimento do filho; no título de 99; no dia da formatura, e nada dizia mais sobre ele do que um certo fim de tarde, na casa da avó. Não se lembrava a idade, nem o ano, nem a ocasião; mas se lembrava de um dia de chuva, quando ouviu o avô dizer que tinha vontade de chá de erva cidreira. Havia um muro e havia um quintal, e para uma criança havia um universo desencontrado entre as hortaliças que se espalhavam nos fundos da casa. A avó, recém-operada dos joelhos, pediu ao menino que fosse até o fundo colher uns “pedaços de mato” – era como diziam. Deu-lhe uma faca pequena, sem ponta; emprestou uns chinelos, e o colocou para fora. No caminho, o menino olhava o céu que ameaçava desabar, e uma infinidade de plantas e arbustos que não permitia que identificasse se eram ervas ou gramas para o chá que conhecia apenas por sachês. Caminhou pela terra, o chinelo já afundado na lama da chuva anterior e, como beija-flor, foi se aproximando de todas as ervas, daninhas ou não, que se assemelhassem com a descrição feita pela vó; até que o cheiro das ervas cidreiras lhe tomou as narinas e a alma. Voltou para casa com uns ramos à mão, o cheiro que nunca lhe abandonou. Sem dizer palavra, a velha tomou em mãos a encomenda, se dirigiu à cozinha e antes que o vapor tomasse conta da casa, uma nuvem do tamanho do universo cuspiu a primeira rajada, seguida de outra, e a claridade; a chuva veio tão forte daquela vez que parecia inapropriado ignorá-la. Foram, assim, assistir de camarote ao festival de raios e reveses contemplado por uma janela aberta, enorme, à espera dos novos tempos.

A dor com que o professor relatava tudo aquilo fisgou nossos amigos àquela altura acordados. Não sei por eles, mas eu, por mim, fui tomada por um pânico de não ser capaz de recolher em mim qualquer história que valesse um relato, um conto de dois minutos que fosse, como aquele. Não havia em minha vida algo que preenchesse uma folha em branco, a não ser tudo o que todos um dia viveram; não havia singularidade em mim que me destoasse de uma mancha uniforme de uma multidão de uniformes. E ver o professor contar um caso tão recalcado, patético até, foi o golpe de misericórdia em minhas misérias.

Eu tentava, mas , diferentemente do professor, não tinha em canto algum da memória qualquer quintal com ervas cidreiras; minha avó por parte de mãe havia morrido de câncer assim que eu nasci, e meu avô jamais foi admitido de volta em nossa roda familiar desde que anunciou o casamento com uma jovem vizinha menos de seis meses após o enterro. Por parte de mãe, tinha ainda dois avós ensimesmados e silenciosos, de quem não recebia permissões sequer para abrir a porta da geladeira da cozinha; uma cozinha fria de uma casa vazia, sem memória para mim, a não ser os tapas que meus pais me davam quando o carro estacionava em frente daquela casa, e eu me agarrava com força no banco dianteiro para que ninguém me tirasse dali.

De meus pais tampouco poderia lembrar uma cena que coubesse em dois minutos. Eram jovens demais, até para mim, e tão distantes que pareciam confiantes na história de que uma separação, para uma criança, era só uma separação. Lembro da despedida de meu pai, a última noite em casa; uma mãe insone e seu café na sacada; um marido dormindo no sofá, rindo as últimas risadas de um seriado infantil, e um par de malas à espera do dia seguinte; horas depois, o prato a menos na mesa, e a minha descoberta de que, não importava o que vivesse dali em diante, sempre haveria um todo que não se completaria; eram, então, apenas despedaços, e mesmo a mais infantil das felicidades estava contaminada pela falta. A minha incapacidade de reunir num mesmo lugar todos os que eu amava; foi assim quando me tiraram do útero, quente, e me jogaram para um mundo de cores mas anêmico; depois, quando cortaram o umbigo que me ligava ao que me trazia ao mundo; depois, quando me tiraram daquela casa; e, quando vi, quando a mãe fazia o bolo de cenoura, não eram seus pedaços que eu saboreava, mas a pergunta do que faria meu pai, estivesse onde estivesse: se teria também em mãos um pedaço do bolo que mais gostava. E quando fazia frio na casa dele, e ele me levava para dormir na sala, na frente da TV, com todos os agasalhos – “abrigos” – e cobertores, não era calor ou proteção que sentia, mas medo de que, em algum lugar do mundo, a mãe sentisse frio.

-O que vai contar na frente da sala, Aninha?
A Nádia me perguntava, e eu só conseguia pensar que minha vida era só uma folha em branco inenarrável; incompleta e desinteressante.
-Eu acho – seguia a Nádia – que a gente devia era contar a memória do que não aconteceu. Planos. Eu ficaria horas lá na frente dizendo tudo o que quero e o que não quero. Vou dizer que vou estudar química, trabalhar na indústria farmacêutica, inventar a cura da Aids, do câncer, das mazelas da alma e dos amores; vou contar que vou chefiar equipes; que vou viajar o mundo contando feitos e colhendo especializações. Vou me casar com 23 anos com um gerente de fábricas que vai me dar dois filhos de olhos verdes e que, antes dos 40 anos, vai se mudar comigo para uma casa de campo. Vamos montar uma pousada e uma adega, receber os amigos e compor músicas. O meu futuro é mais brilhante do que tudo o que sou capaz de me lembrar.

A Nádia não conferia os meus silêncios, e mal se dava conta de que, por mim, a vida futura parecia ainda menos atraente. Em uma semana, tudo o que passou pela minha cabeça é que só valeria a pena um relato na frente da sala se meu corpo fosse esmagado por um caminhão que me tirasse a vida a poucos metros da frente da escola, onde minha angústia se calaria para sempre.

No dia seguinte, todos estavam inquietos, mergulhados nas próprias memórias. Cido dizia estar decidido: ia falar da primeira vez que foi a um estádio, e viu de perto o Marcelinho Carioca, que arremessou para ele a camisa ao fim do jogo; o futebol pareceu um bom tema, e em instantes o João Pedro se lembrou que tentou cobrar escanteio uma vez e a bola entrou direto no gol; disseram que o nome era “gol olímpico” e, de tão raro, deveria valer dois gols; Marta se lembrava de quando levou o Pierre atrás da escola: ele pediu um beijo por carta e a convidou para o encontro; ela se encheu de batom vermelho, da mãe, e só soube que o menino tinha alergia quando viu boca e pescoço do rapaz pintados feito palhaço; o menino que caiu no choro, com vergonha de voltar para a aula – mas logo se deu conta de que isso só a fazia rir, e se deu conta de que os momentos alegres não eram momentos marcantes; aquilo não a marcara, falamos. E ela prometeu outro tema.

Dércio, então, se pegou a escrever seus dois minutos: lembrava da primeira vez que ouviu “Música para Acampamento”, da Legião; estava numa brinca no quintal da Gabriela, os pares se formando pra dançar, quando o Hugo pôs “Pais e Filhos” para tocar. Havia um mundo tão grande a ser descoberto que o Dércio só pensava na letra, que hoje diz achar besta, mas que repetiria a vida toda, em caderno, carteiras, camisetas e decorações: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. E só Deus sabe o quanto rimos quando ele terminou o relato, que só emocionava o seu autor.

Na volta para casa, a Nádia parecia querer falar alguma coisa:
-Aninha, acho que sei o que vou contar. Passei o dia fazendo um pente-fino das minhas coisas, e quando vi, chorava. Chorava que nem uma filha da puta lembrando uma coisa que me aconteceu. Mas faz tempo.

E a Nádia se pegava a contar uma história de mais de dois minutos que, ao fim, colocou nós duas a chorar: uma velha magricela que passava na rua da sua casa recolhendo lixo, coisas que as famílias jogavam fora e que ela podia higienizar, reciclar, revender. A casa ficava ao fim da rua, e até que o percurso fosse completado, o velho carrinho se enchia de inutilidades; pedaços de madeira, papelões rasgados, caixas amareladas, livros antigos, gibis, lápis e borracha. Ao fim do percurso, estacionava na casa dela, onde era recebida, a contragosto, para um copo de água mendigado. A mãe se pegava a conversar com a mulher, que não economizava afagos à criança. Mas a Nádia tinha medo; mais: tinha nojo de ver uma velha banguela dentro de casa, as pernas arqueada, tomada em pelos; a mulher que nunca se casou, que deixava o cabelo solto, branco, pela cara lambida; o rosto entortado em linhas incertas, areadas, tomadas por buracos. De doce só a voz, pausada, as educações e muito-obrigados.

“Amanhã é aniversário dela”, dizia a mãe. “Meus parabéns, Nádia”, no que respondia.
A pobre velha. Antes que viessem os abraços e cumprimentos, a Nádia se trancou no banheiro; no tédio, tomou o tubo de pasta de dente vermelha, e pintou o rosto; disse que ia brincar de índio, mas ficou com as faces queimadas pela reação: tudo para não ver aqueles lábios secos tocarem nela em abraços. Ficou ali trancada até a mulher ir embora.

No dia seguinte, a festa: as bexigas espalhadas, os discos numa vitrola que levaram para o jardim; o bolo da Minie, os papéis-guardanapos azuis e cor-de-rosa, lembranças: línguas de sogra, chapéus, e a espera pelos padrinhos, o triciclo, as bonecas, os bambolês, os rolemans. E a velha, de novo, catando as sobras, e pedindo água? Não. Veio, dessa vez, sem o carrinho, e em sorrisos; trazia o que encontrava no dia anterior e recolhia: uma bola vermelha, suja e bem lavada, que mal quicava. A velha que se lembrava e, sem graça e sem jeito, passava por lá para enfim os cumprimentos: a Nádia com a bola, os olhos silenciosos, de quem se agarrava àquilo, àquela manifestação.
-Um copo de água, dona Nena? Hoje temos guaraná. Não quer ficar?

Queria não; se fora; a velha: tinha um sobrinho que vivia com ela, muitos anos atrás; e que fora embora. Em troca, ganhara todas as crianças daquela rua, de quem não esquecia os aniversários. A Nádia, contando tudo aquilo, em longos mais de dois minutos, o lápis nos olhos já castigados de tanto chorar; e soluçava, e se benzia, e dizia que na vida não conhecera outra santa nem nada tão bonito. A dona Nena.
-Me tranquei no banheiro, fiquei lá o aniversário todo; abraçada àquela bola vermelha, àquele gesto.

A Nádia falava aquilo, e eu de novo chorava sem saber se chorava por ela ou por mim. Não tinha santas em minha vida, e as festas de aniversário eram só um exercício de logística; os pais que não podiam dividir as mesmas mesas; e que uma hora se encontravam, e se pegavam a ladrar, aquele inferno.

Não tinha quintal com erva cidreira em nossa casa; nem tinha avós nem bola de aniversário. Tinha, que me lembre, as tardes livres na loja onde trabalhava a minha mãe, antes desempregada pela solteirice. Foi bater na Iracema, loja de roupa infantil; e eu saía da escola, ia com a mãe para o shopping. Foi lá a minha infância: não na rua, não na mangueira vizinha, não nos jogos de calçada; ficava parte da tarde quieta, dormindo nos sacos de roupa do depósito, vendo a mãe atender as mães de outras crianças. Me vestiam, me fitavam, faziam as experiências com as roupas de outras estações; e eu só via o sol filtrado a vida toda pelos janelões dos corredores. Nossa loja ficava ao lado de uma loja de armas de caça e um restaurante. Eram os cheiros que me marcavam: os corredores limpos, ar-condicionarizados, os bolinhos que fritavam ao fim do dia, e roupas novas, sacos de roupas novas que recolhiam meu sono num depósito do andar de cima. Correr ali não se podia; e a mãe minguava as fichas para o fliperama; e bem avisava que ali se concentravam os malandros, os de boné, os rueiros que iam filar ficha dos meninos longe dos pais. Tinha a loja, a poucos metros dali, de importados: as roupas esporte, as bolas de basquete, as luvas de futebol. Via, olhava os bonecos, os hominhos e as tartarugas-ninja; sabia desde quando estavam ali na demonstração. E ia para as lojas Americanas, via a fila de velhas para comprar pão, e um molho que vendiam ao lado da padaria, que às vezes a mãe comprava e levava para nossa casa nova, que não tinha mesa de cozinha, só um balcão para dois. Naquelas tardes, tocava, o dia todo, uma música alegre de tão triste. O dia todo, a certa hora do dia, tocava; mas ninguém se lembra dela quando conto. O shopping também não existe mais. A loja, faz tempo, se mudou. Só o balcão para dois da cozinha segue no mesmo lugar.

Os amigos me falam de campos, de bolas e de quintais; de noites de lua e chácara; mas eu só me pego a ter saudade quando lembro de um corredor e da loja de armas; do cheiro de lugar fechado, dos sacos plásticos e da música que mandava seguir em direção ao oeste – e que hoje ninguém se lembra. É tudo do que me orgulho, e ainda não tenho ideia que parte vou ter de omitir quando o professor souber que não há em mim uma linha capaz de fazer inveja a Robinson Crusoé.
                                                                                         
                                                                                                    





Um comentário:

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças