Me desculpe o eventual leitor pela catacrese aí do
título, modo errado de muita gente ler
textos literários, coisa que não pode dar certo. Foi isso que expliquei a meu
amigo Adamastor. Ah, sim, porque o Adamastor anda lendo e isso me enche de
preocupação, pois me dá muito trabalho.
Ainda na semana
passada ele me chega (ação presentificada) aqui em casa, com o desagrado
vincando sua testa. Como, interpela-me ele, como podem admirar um cínico como
este Machado, capaz de defender uma tese assim tão… tão… e procurava uma
palavra que não me desagradasse, pois tratava-se do Bruxo do Cosme Velho. Mas
que tese, homem de Deus? “Ao vencedor, as batatas”, ele me joga a frase no
rosto e no peito de tal forma que aquilo fica escorrendo corpo a baixo por bem
um meio minuto.
Servi um cafezinho ao
Adamastor e esperei que ele sentasse, antes de começar a explicação. O
cientificismo tentava reduzir o ser humano a uma fórmula
físico-químico-biológica, pouco mais que isso. Grassava, naquele então, uma
espécie de darwinismo filosófico que justificava entre seres humanos processos
da seleção natural. Mas, apesar do romantismo kantiano, o homem é um ser moral,
e Shopenhauer nenhum da vida vai me convencer do contrário. Esta frase (e eu me
limpava da meleca ainda a escorrer na minha roupa) é uma ironia machadiana.
Ele critica os
excessos e as simplificações de seu tempo. E aproveitei: – Aliás, literatura
nunca se deve ler ao pé da letra. Principalmente um escritor como o Machado de
Assis, tão cheio de recursos, deve ser lido levando-se em conta seu contexto
histórico, o grande diálogo que ele estabeleceu com a cultura universal, os
recursos de retórica que costumava usar. E a ironia é um dos recursos que mais
freqüentemente aparece na obra machadiana.
Depois de comentar a
política municipal, pular a estadual e execrar a federal, chegou à planetária.
É assim, o Adamastor: um gigante. Disse-me que leu em algum lugar, alguma coisa
como “A história é sempre contada pelo vencedor.” Eu tremi na base.
Literalmente tremo sempre nesta mesma base já meio frágil quando ouço tal
afirmação. O que sabemos nós da história da humanidade, nós que nos habituamos
a ouvir obrigatoriamente os dois lados? Estamos há muito tempo ouvindo somente
o lado do vencedor? Parece que sim. Pior que isso: ingenuamente acreditamos em
tudo que ouvimos.
Já tinha deixado cair
no escuro da memória aquela cena da semana passada e não me lembrava mais do
perigo que me ronda quando o Adamastor começa a ler. Hoje de manhã por pouco
ele não me tira da cama. Tocou a campainha com insistência, nervosamente.
Precisava dar uma palavrinha, disse-me quando me viu. E enquanto entrava
aproveitou para ir perguntando se o Grande Irmão, do George Orwell, referia-se
a Stalin, se “1984″ era uma denúncia satírica ao controle do Estado soviético
sobre seus cidadãos, e foi por aí perguntando sem me dar tempo de responder. Eu
só dizia que sim, que diziam isso mesmo, e ele não parava. Ao falar da
Novilíngua e do modo como a História era periodicamente reescrita, seus olhos
brilharam. Era o gancho que faltava. Lembrei-me daquela frase que me faz tremer
na base. E ele percebeu minha lembrança no ar.
De repente, com ar
meio derrotado, o Adamastor levantou-se fazendo menção de retirar-se. Parou na
porta da cozinha enquanto eu tomava meu café. Stalin não existe mais. Certo?
Certo. Nem União Soviética. Certo? Claro. Logo, ele concluiu, não são mais eles
que vigiam o mundo todo, que invadem as casas, que controlam nossos movimentos,
que contam a História em Novilíngua, que controlam as redes sociais, que
proíbem o wikileaks. Certo?
Dei de ombros, pois
estava com muita pressa.
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