Ensaio de Matheus Arcaro:
Literatura e cinema: Madame Bovary
Literatura e cinema: Madame Bovary
Certa
vez, Alfred Hitchcock disse que grandes livros dão péssimos filmes; que o
melhor mesmo é filmar os maus livros. Levando adiante a ironia do diretor, é
lícito deduzir que “grandes livros” não geram bons filmes porque os bons livros
são, sobretudo, carregados pela linguagem. A maneira que o autor conta a
história é mais importante que a história em si. Nesse sentido, seria muito
mais fácil produzir um filme baseado em um livro como “Harry Potter”, por
exemplo, que “conta uma história”, do que em uma obra como “Grande Sertão: Veredas”
em que o que há de mais importante é a própria linguagem.
Para nos
aprofundarmos na intersecção entre cinema e literatura, tomaremos como
ilustração o romance “Madame Bovary”, escrito por Gustave Flaubert em 1856 e o
filme homônimo de Chabrol. Falemos brevemente sobre o filme.
A
produção data de 1991 e é a sétima das oito adaptações do romance de Flaubert.
O diretor Claude Chabrol (1930 – 2010) foi um dos idealizadores da “Nouvelle Vague”, movimento artístico do
cinema francês que visava transgredir as regras do cinema comercial com uma
montagem inesperada, original, sem concessões à linearidade narrativa. Chabrol se
dizia “herdeiro” de Flaubert. Talvez isso explique por que na maioria de suas
obras há críticas à burguesia e à violência da natureza humana. Uma frase sua é
marcante a respeito da sua visão de cinema: “Prefiro
o microscópio ao telescópio. Nos meus filmes as pessoas gritam pouco. Mas isso
é até mais assustador do que se elas gritassem muito.”
Adentremos
agora nas considerações sobre o livro.
Não é
exagero afirmar que Flaubert mudou a história do romance. Contudo, mais
impressionante que isso, é o fato de que ele chegou a tal proeza sem fazer uso
de grandes acontecimentos. O gênero romance, até o início do século XIX, se
destacava por apresentar histórias fantásticas, personagens maiores que a vida,
fatos heroicos e gloriosos. Flaubert rompeu com esses preceitos apresentando a vida
cotidiana de seres extremamente medíocres, num meio medíocre, com uma trama
medíocre.
O
próprio Flaubert disse que buscou exaustivamente a palavra exata: o principal
de cada ação, o essencial em cada fato. Cada cena, cada frase tinha a maneira
precisa de ser escrita. E o critério era somente um: estético. Ele queria um
romance que se sustentasse pela linguagem. Se Balzac tivesse dez por cento do
cuidado que Flaubert tivera com a linguagem, com certeza não teria escrito seus
noventa romances. Como surgiu essa obsessão de Flaubert pela linguagem?
Aos 28
anos ele escreveu a peça “Santo Antônio” e mostrou a dois amigos que, após
escutá-la da boca do próprio autor durante quatro dias, sentenciaram: “Você deve jogá-la no fogo”. Depois dessa
decepção, Flaubert resolveu escrever “Madame Bovary”, pensando e sentindo extenuantemente
cada palavra que transpunha para o papel. Por isso levou cinco anos para
concluir a obra: de 1851 a 1856.
Em 1852,
enviou uma carta à sua amante sobre o livro que estava escrevendo: “O que me parece belo, o que eu gostaria de
fazer é um livro sobre o nada, um livro sem ligação exterior, que se manteria
pela força do seu estilo, um livro que não teria quase tema, ou que o tema
fosse invisível”.
Em outra
ocasião Flaubert escreveu: “A história, a
aventura não me interessa. Penso, quando escrevo um romance, em expressar uma
cor. Um tom. Em Madame Bovary tive a ideia de expressar um tom cinza, a cor do
mofo da existência enclausurada.”
O
crítico Axel Preiss afirmou sobre a obra: “Madame
Bovary é muito mais a aventura de uma narrativa do que a narrativa de uma
aventura.”
Os dois
trechos de Flaubert somados à afirmação de Preiss podem servir de base para a
discussão que há tempos ocupa os teóricos da comunicação: a adaptação de obras
literárias para o cinema. Se admitirmos “Madame Bovary” como metonímia do
problema, podemos formular assim a questão central dessa discussão: como é
possível adaptar um livro sobre o nada para o cinema? Ou ainda: como levar o ‘tom’,
a ‘cor’ do romance para as telas? Em termos ilustrativos: como transpor o trecho
abaixo contido no romance para o cinema?
“Como Emma ouvia, nas primeiras vezes, a
lamentação sonora das melancolias românticas repercutirem em todos os ecos da
terra e da eternidade! Se a sua infância tivesse transcorrido no fundo de
alguma loja de bairro comercial, ter-se-ia talvez aberto às invasões líricas da
natureza, que comumente não chegam ao nosso conhecimento senão pela tradução
dos escritores.”
Vale
ressaltar que não se trata de purismo, tampouco de uma hierarquia entre
literatura e cinema. Trata-se, isto sim, de admitirmos que literatura e cinema
são dois modos diferentes de expressão. As particularidades do texto literário
jamais se encaixam de forma pura e simples nos 24 quadros por segundo do
cinema. Por quê?
A partir
de Flaubert, a linguagem passou a ser tão ou mais relevante que o enredo. O “como” passou a sobressair-se ao “o
quê”: as figuras de linguagem, o tipo de narrador, o estilo direto, indireto ou
indireto livre. Em suma: na literatura, ou melhor, na alta literatura, a expressão
tende a ter mais peso que o conteúdo.
No
cinema, o estilo é de outra ordem: fotografia, movimento de câmera, uso da
música e da trilha sonora, direção de atores etc. Quando se leva uma obra
literária ao cinema está se fazendo menos uma adaptação do que uma verdadeira transposição
de um meio a outro. É como um poema em língua estrangeira. É lícito falar em
tradução? Na verdade, ao traduzir um poema, está se criando outro. Ou no mínimo
recriando o poema original. Guilherme de Almeida falava em transfusão.
Mas isso
não significa que seja impossível fazer ótimos filmes a partir de grandes obras
literárias. Vidas Secas é um exemplo. A explicação talvez resida no fato que a
intenção do diretor Nelson Pereira dos Santos não era captar a literalidade da
trama, mas o espírito mais fundo da obra de Graciliano Ramos, incorporando na
fotografia, na montagem e no trabalho com o som a secura do ambiente e da vida
que oprime a família migrante.
Assim
sendo, podemos afirmar que o próprio filme de Chabrol é uma “transfusão bem
sucedida.” A esse respeito escreveu o jornalista Marcelo Coelho:
“Não
se trata de uma versão do romance de Flaubert. Nem de uma transposição. Chabrol
procurou traduzir a linguagem de Flaubert para o cinema – e não apenas fazer
uma adaptação cinematográfica da história do romance. Nada mais errado,
portanto, do que dizer que Chabrol “traiu” Flaubert, ou dizer que o erro de
Chabrol foi ter sido fiel demais ao romance. Ao contrário, ele foi extremamente
fiel não ao romance, mas as intenções de Flaubert”.
Mesmo
Flaubert afirmando que queria um livro “sobre o nada”, um livro que se
mantivesse pelo estilo, várias questões são levantadas no romance e bem
exploradas no filme.
Podemos dizer que o romance é uma espécie de radiografia da sociedade burguesa
da França do século XIX, que sofria profundas transformações.
Um dos
pontos levantados é a crise da fé religiosa e a ascensão da ciência,
principalmente motivada pelo positivismo que, por sua vez, não dava conta das
mazelas do homem (lembremo-nos do pobre Hipólito que tem sua perna amputada
devido ao procedimento equivocado de Charles). Esse cientificismo é ilustrado
no personagem do farmacêutico Homais. Ele é o veículo do discurso da
objetividade científica, a personificação dos ideais iluministas. Eis uma de
suas frases que ilustra seu pensamento: “Meu
Deus é o deus de Sócrates, o deus de Voltaire”.
A
segunda crítica que Flaubert desfere é contra o sistema social e financeiro da
Europa. O comerciante Lheureux é a personificação da ascensão do capitalismo (tenhamos
em mente que a Revolução Industrial colhia frutos na primeira metade do século
XIX) e, de forma mais abrangente, da hipocrisia e frieza da burguesia.
A
terceira “análise” feita pelo autor é sobre a mediocridade e a moralidade. Flaubert
foi processado por ter escrito um romance obsceno, com “ofensas à moral pública
e religiosa”. A cena da carruagem, por exemplo, foi cortada pela revista que
publicou o romance pela primeira vez. A mediocridade está em todos os
personagens, mas em Charles Bovary é gritante. Por ser uma personagem plana, ela
não surpreende o leitor ou espectador. A esse respeito fica claro o sentimento
de Emma sobre ele: “A conversa de Charles
era sem relevo como uma calçada e as ideias de todo mundo nele desfilavam com
seu traje comum, sem excitar emoções, riso ou devaneio.”
Rudolph
(o primeiro amante) é a ilustração da nobreza decadente; personificação do
galanteador que faz uso da retórica para conquistar mulheres ingênuas. Diz ele
para seduzir Emma: “Sempre os deveres.
Estou cheio dessas palavras.” E ainda: “A
paixão é a única coisa que existe sobre a Terra”. E mais: “Não resistimos aos sorrisos dos anjos”.
Leon (o
segundo amante) é a personificação da ingenuidade romântica. Isso fica claro em suas palavras, como por
exemplo, no excerto: “Prefiro a música
alemã, aquela que nos faz sonhar.” Lembremos que na Alemanha, terra de
Goethe e Beethoven, acontece o ápice do Romantismo.
Emma, ao
contrário de Charles, é uma personagem esférica. Ao tom cinza que perpassa a
obra, Flaubert contrapõe o vermelho de Emma, cor da paixão, da embriaguez que
ela aprende a desejar lendo romances de amor e aventuras. Como Cervantes,
Flaubert critica a literatura pelos desvios da protagonista. Critica o
Romantismo:
“E Emma procurava saber o que exatamente se
entendia na vida pelas palavras felicidade, paixão e embriaguez, que lhe haviam
parecido tão belas nos livros.”
Eis que
não somente o leitor, mas a própria heroína fica na espera que algo aconteça. E
nada de extraordinário acontece. Ela é uma mulher sonhadora e por isso se casa,
mas o casamento não dá conta dos seus anseios. O próprio título “Madame Bovary” mostra Emma
aprisionada ao médico medíocre que a impede de sair em busca de aventuras. Por
não ter sua subjetividade bem construída, ela sempre busca no outro a sua completude.
Então ela trai. Mas até as traições, que em outros romances cumprem o papel de
“válvula de escape” de uma existência monótona, são insuficientes; caem no
tédio depois de algum tempo.
Por fim,
podemos destacar o suicídio como tema presente na obra. Aliás, é somente na
morte que Emma encontra saída. A morte como solução para os problemas é um
desfecho tipicamente dos românticos, aqueles que vivem ideologicamente uma
utopia de vida. Portanto, este final trágico é uma crítica do autor realista à
postura dos romancistas românticos.
Dizer
que Flaubert é um marco na literatura universal é tautologia, mas não exagero.
Basta lembrarmos que ele abriu caminho para escritores do porte de Henry James,
Joseph Conrad, Virginia Woolf, James Joyce e Willian Faulkner. Assim, não é de
se estranhar que na segunda metade do século XX o seu “Madame Bovary”
inspirasse várias versões cinematográficas. Nem melhores nem piores que o
livro. Mas diferentes.
Parabéns pelo ensaio, Matheus!!
ResponderExcluirVocê esclareceu não somente tópicos importantes referentes a adaptações fílmicas de obras literárias, mas também delineou diversas questões estéticas da obra de Flaubert. Trago, se me permite, duas citações do mestre, ambas de 1853, em carta a já citada amante Louise Colet:
“a forma é um manto. Não, absolutamente! A forma é a própria carne do pensamento, como o pensamento é sua alma, sua vida.”
“Outrora acreditava-se que só a cana de açúcar produzia o açúcar. Agora se o tira de quase tudo; acontece o mesmo com a poesia. Extraiamo-la do que quer que seja, porque ela jaz em tudo e por toda parte: não há um átomo de matéria que não contenha o pensamento; habituemo-nos a considerar o mundo como uma obra de arte de que é preciso reproduzir os procedimentos nas nossas obras.”
Depois de 131 anos da morte de Flaubert, é comum destacar a importância, para o romance, da forma e de um método reflexivo, sistemático e poético. Voltemos também às origens, aos pensadores que pouco comeram e muito ruminaram para nossa relativamente fácil digestão.
Natasha