(Do livro À sombra do cipreste, vencedor do Prêmio Jabuti 2.000, editado pela Global Editora)
Portas e janelas mantêm-se fechadas desde o início da
noite: o frio lá fora, rondando a casa, silencioso, enquanto na sala enfumaçada
de vez em quando alguém abafa a tosse com a mão, pede um copo dágua, tenta
espantar o sono. A mulher que até agora vem puxando o terço abre um pouco a
janela da frente, respira a noite - sua cabeça escondida atrás da veneziana:
não suporta mais o cheiro adocicado e murcho das flores, ela esclarece assim
que retorna.
Soltas no regaço, em repouso, as mãos de Ana, ásperas e
rugosas, desde a véspera
irremediavelmente inúteis, não se movem. Há muito elas já vinham
assumindo esta coloração baça de gesso, de maneira imperceptível porém
progressiva, até que, esta madrugada, ao fitá-las através da fumaça, seus olhos
sujos de pasmo e sono, ela diz para si mesma pois é, e eu continuo aqui, livre
e sem razão. E suspira. Apreensiva. Mas, apesar do desconforto de ter a casa
devassada por tantos olhos, com os vizinhos vasculhando seus cantos escondidos,
ditando as providências, mudando lugares e horários, é um momento em que não
gostaria de estar sozinha. E não está.
Pouco antes, um
daqueles intrusos encostou-lhe delicadamente o assento de uma cadeira nas
curvas das pernas, senta, criatura de Deus, porque ninguém pode ficar assim, de
pé parada, a noite toda. E ela sentou-se
em silêncio, apalermada, o busto um pouco erguido demais para quem velava desde
a tarde anterior - o modo como pensava
assumir a chefia da casa - mas sem muita consciência do ritual que se cumpre em
torno daquelas quatro velas que pouco iluminam e mesmo assim se consomem
irremediavelmente nos castiçais.
O ar espesso da sala enfumaçada torna-se mais denso ainda
com o sopro quente daquele cochicho: seus olhos enxutos. A noite toda assim:
enxutos. A vizinha da frente tenta arrancar de Ana qualquer sinal de
sofrimento, inconformada com tamanha serenidade, e, como não consegue, abre com
estrépito a janela por onde entra uma golfada de ar gelado e o movimento
nascente do bairro. Aquilo, seu gesto
brusco, parece a muitos um desrecalque,
alguma vindita, forma de jogar o velho, mais entrevado do que nunca, no meio da
rua. Alguns chegam a trocar olhares significativos; nada mais que isso,
entretanto. Ana apenas suspira, mais por cansaço que de dor, ao ver despejar-se
tanto sol sobre o esquife do pai: seus olhos cerrados. Enxutos. Mais do que
ninguém, naquela sala, ela tem razões para a tristeza, todos sabem, mas quando
seca o coração e há flores murchas nos vasos ao redor da mesa, os olhos não
vertem mais lágrimas. O coração de Ana, ainda jovem ela o espanejara,
espremera-o bem, e o trancara por fora, protegido. Quem sabe para sempre. A
vida dele em suas mãos, minha filha - sua mãe no quarto do hospital. Em suas
mãos.
Lágrima nenhuma, cochicham os homens na cozinha, quase
alegres com o escândalo que é a falta de sentimento daquela filha. Nenhuma,
repete ainda um dos mais velhos, cigarro pendurado em um dos cantos da boca,
cismarento, olhar perdido na superfície agitada da cafeteira, de onde retira a
colher pingando e onde a espuma, aos poucos, se desmancha. Também, pudera,
recomeça depois de encher as xícaras, e, percebendo que vários de seus
companheiros se voltam para ele, curiosos, decide silenciar: boatos antigos,
apenas, o ódio pelo pai e aquela paixão devastadora. Boataria. E, enquanto
coloca xícaras vazias em uma bandeja (o café das mulheres que rezam o terço na
sala), sacode a cabeça repetindo: tudo boato, claro. Maldade do povo desta rua.
A não ser pela ladainha intermitente das mulheres na sala e
pelo espocar de uma que outra gargalhada depois de uma anedota na cozinha, a
madrugada avança lenta e silenciosamente para a maioria dos participantes da
vigília - os que afundam as mãos na geladeira, servem-se com desenvoltura do
fogão, enchem os cinzeiros de tocos de cigarros e os esvaziam no cesto de lixo. Outros, derrotados pelo
cansaço, ressonam jogados sobre a mesa, a cabeça apoiada nos braços. Vez por
outra um deles levanta a cabeça, o cabelo empastado na testa, os olhos
injetados, para perguntar se já está na hora.
E então, ele veio?, perguntam ao velho, mal aparece de
volta na porta da cozinha. A expectativa de que o passado encontre sua outra
ponta nesta noite longa e fria já vai esmorecendo porque o dia começa a entrar
pelas frinchas das venezianas e pelas frestas por debaixo das portas. Talvez
não venha mais, respondem seus braços abertos e suas mãos espalmadas.
Instigado pelo barulho repentino e pelo cheiro marrom do
café, um dos amigos da casa consulta o relógio e avisa: a hora chegando.
Ninguém lhe contesta o direito de determinar a seqüência das ações naquela casa
e naquelas circunstâncias. Há mais de trinta anos, desde que o entrevado e a
filha vieram morar nesta água-furtada de fim de rua, ele e João Pedro, seu primo, eram as únicas
pessoas a freqüentar a casa quase todos os fins de tarde, por conta daquelas
infindáveis partidas de xadrez que mantinham o velho aceso e combatente.
Durante duas décadas ou mais os
moradores da rua maliciaram suas visitas, sugerindo entre risos que um dos dois
ainda sairia casado com Ana. Ou os dois. E isso os deliciava muito, pois não
conseguiam imaginar o que seria feito do velho, então. Por fim, sem resultados
aparentes, desistiram de inventar o futuro e esqueceram-se de Ana em sua
prisão: a vida dele em suas mãos, minha filha. Mas o povo não estava
inteiramente errado. João Pedro, o mais novo dos dois primos, durante muito
tempo não fez questão de ganhar ou
perder aquelas batalhas intermináveis, em que peões e bispos, brancos ou
pretos, eram abandonados à própria sorte, enquanto seus olhos sequiosos bebiam
gota a gota cada gesto de Ana, mergulhavam nas curvas da moça enquanto seus
braços fortes e roliços empurravam a cadeira do pai. Ela não tinha ainda estes olhos fundos tão
tristes e medrosos nem sua pele era pálida como agora. Seu rosto não era assim
chupado, de maçãs salientes, nem seus cabelos tinham sido ainda tingidos pelas
mãos do tempo. No dia em que ele criou coragem e declarou seu amor, sem nada
responder a jovem sumiu para os fundos da casa desmanchando-se em prantos. Em
suas mãos, minha filha. Em suas mãos.
O jovem entendeu a recusa de Ana e seu silêncio, jurando com a maior seriedade nunca mais
voltar ao assunto sem que a moça
estivesse desimpedida de seu penoso encargo.
Com o olhar embrutecido pelo sono, Ana observa o antigo companheiro de seu pai,
enquanto ele pega a tampa do esquife, até então de pé e encostada à parede,
para fechar o caixão. Nos quatro castiçais de alumínio, pequenos tocos de vela
irremediavelmente inúteis tentam ainda resistir à lufada de ar gelado que acaba
de entrar pela janela. Ninguém se inclina sobre o féretro armado em cima da
mesa da sala, o rosto macerado pela dor;
ninguém se joga sobre o corpo, tentando retê-lo por mais alguns instantes. As
mulheres, todavia, que há bastante tempo descansavam, sonolentas, recomeçam
suas rezas, agora, ante a iminência do ato derradeiro, com muito mais empenho,
atropelando-se umas às outras, perdendo-se no ritmo desarvorado, esganiçando
palavras que nem elas mesmas sabem o que significam. Algumas pessoas levantam-se,
indecisas, sem saber como deve continuar aquela ação. Ana permanece como está,
as mãos soltas no regaço, o olhar turvo, o busto um pouco levantado demais para
quem vela desde a véspera.
Primeiro as mulheres sentadas do lado de trás do caixão. Ao
verem-no ali de pé, estancam assustadas
a ladainha, enfraquecendo de repente os apelos em favor da alma do velho. Então
as demais, as que estão de costas para a porta, lêem o susto nos olhos das
companheiras e viram-se de uma só vez para trás. Ele chegou, ouve-se alguém
gritar para os fundos, onde os homens fumam e contam piadas.
Recortado contra a manhã clara e fria que espreita a sala
escura pela porta aberta, João Pedro observa como as mulheres subitamente
interrompem suas rezas por descobrirem-no sombra ali parado; vê como os homens
chegam da cozinha, atropelando-se pelo corredor demasiadamente estreito e
desembocam na sala pela porta oposta. O recém-chegado adivinha curiosidade e
dúvida em alguns olhares, ternura e esperança na expressão de antigos companheiros.
Não entra logo, também ele ansioso, sem saber como será recebido depois de
tantos anos de espera. Entre as mulheres, tão-somente duas ou três fisionomias
um pouco mais familiares e uma cabeça que não se volta, onde ele supõe muitos
cabelos brancos.
Por fim, quando parece que nada mais vai acontecer, João
Pedro com sua sombra invade silenciosamente a sala e pendura o chapéu num prego
ao lado da janela. Ninguém mais se move, ninguém ousa falar, e mesmo a
respiração parece estorvo para quem não pretende perder nada da cena que se
desenrola ali, à frente de todos.
São apenas quatro passos, mas João Pedro avança arfante e
com extrema dificuldade - as quilhas de seus pés, entorpecidos na espera,
singrando aquele mar de flores murchas. Só quando atinge o espaldar da cadeira
onde Ana o espera e depois de apoiar suas mãos pesadas nos ombros da mulher é
que João Pedro percebe perplexo que os tocos de vela agonizam em seus castiçais. Ana segura a mão do amigo
em seu ombro, tentando retê-lo mas de maneira relutante. E assim, amparados um
no outro, sem rota possível, todavia, os dois permanecem por longo tempo.
É o primo de João Pedro quem, por fim, consulta o relógio e
informa que não se pode esperar mais. Pega novamente a tampa do esquife, que
havia largado com a chegada do primo, e espera que Ana contemple o finado pela
última vez. Ana move os lábios quase imperceptivelmente:
- Adeus, meu pai.
Um homem com as duas mãos pousadas nos ombros de uma
mulher, protetor, as pessoas olham enternecidas, acreditando ser o destino que
finalmente se cumpre. Então, como acham que ali o ritual já está completo,
levantam-se os que estão sentados e juntam-se aos que tudo observam de pé para
sair acompanhando o féretro, que já está na calçada.
Quando, por fim, o último toco de vela expira, João Pedro
força levemente a mão presa, e Ana a solta sem mover a cabeça, sem manifestar
emoção alguma, mesmo porque, ela já não tem certeza de sentir o que quer que
seja. Volta-se finalmente para vê-lo pegar o chapéu e sumir na intensa claridade
da manhã recortada pela porta.
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