(Do livro A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil)
Alice e o Violoncelo
Um quarto só, quartinho, espremido entre uma claridade suja de outono e o
cheiro forte de suor que a cama exalava: o lar. Um quarto atravancado de sons e
objetos absurdos, sem lugar para a vida doméstica - o cubículo possível. Quando
a noite começava a entrar pela janela, o quarto encolhia ainda mais - seu parco
espaço encoberto pelas sombras. Nos dias em que não havia concerto nem ensaio,
era a hora de Alice ocupar a cadeira ao lado da cama com a cintura do
violoncelo presa entre os joelhos de calos grossos.
Num acesso de ciúme, Heitor apertou os olhos e escondeu a cabeça debaixo
do travesseiro, fingindo que dormia. Sem aquela música a cama seria
intolerável, o quarto uma prisão infecta. Se tinha que suportar tantos
exercícios enervantes durante o dia, era seu direito adormecer embalado pela
música. Não tocava para os outros, sedutora? Ninguém com mais direitos sobre
Alice do que ele, seu marido. Mas o modo como a mulher enlaçava o instrumento
parecia-lhe despudoradamente sensual.
Fingia dormir na esperança de que a mulher interrompesse a música, porque
então poderia exercer sobre ela seu império, cumprido com prazer e dor:
instigá-la, ameaçando-a com manchas roxas pelos braços, a continuar tocando,
sempre, tocando mais, até que as cãibras e a ânsia de vômito provocassem seu
choro convulso. Seus pedidos de compaixão, molhados e aflitos, tinham o poder
de comovê-lo. Então conseguia relaxar e dormir realmente.
Alice, entretanto, conhecia o jogo, suas manhas, e, ainda que exausta, não parava de tocar.
Não parava porque decidira que aquela tarde teria de ser diferente. E a decisão
se instalou numa pequena ruga da testa, uma ruga renitente. Não estava disposta
a lhe entregar mais uma vez os braços em suplício para que ele, subjugando-a,
se sentisse um pouco menos infeliz. Sem perder de vista o marido, a mulher,
fingindo distração, mantinha os olhos voltados para a janela por onde chegava
escorregando silenciosa a noite de outono. Ela sabia que Heitor, através do
tecido ralo do lençol, observava cada um de seus gestos. Esse era o jogo e
Alice tinha resolvido levá-lo até o fim.
Era preciso acender a lâmpada antes que o marido se diluísse entre as
formas da cama.
Movimentos bruscos, por baixo do lençol, revelavam que Heitor estava
aflito, engatilhado à espera. A violoncelista, então, exagerou na lentidão do
adágio e na tensão do arco a correr sobre as cordas mais graves. Fazia isso com
prazer, um prazer bem próximo do gozo. Arranhava competente os nervos do
paralítico, seu momento de domínio. Arrancava do instrumento um som rouco,
plangente, lamento que lhe subia das entranhas. A melodia se arrastava elegíaca,
como um sofrimento muito grande. Escondido pelo lençol, muito de leve, contido,
Heitor revolveu-se de gozo, atingido por aquele sofrimento sem fim que nascia
da mulher e seu violoncelo. Agitou-se e soltou um vagido animal, fraco, quase
imperceptível. Como no orgasmo, a dor de um prazer.
Sem desviar a cabeça, Alice revolveu os olhos procurando alguma coisa em
que se apoiar, pois começava a se perder nessa nova experiência de medo e
coragem. Ela sabia que o cansaço já vinha a caminho e o esperava, prevenida.
Por isso era preciso sentir o próprio corpo, situá-lo em algum lugar onde
pudesse movimentar-se. As paredes nuas não lhe ofereciam nada, os móveis
começavam a sumir. No canto do quarto, afastado, o vaso de antúrio sem brilho,
acanhado, ia sumindo entre vasos menores, tornando-se um vulto feito com os
restos de algumas sombras, insensível a qualquer disputa e à música em que se
afogavam rancores. O corpo de Alice estremeceu quando seus olhos bateram no
vulto de antúrio. Ele ainda trabalhava, o Heitor, quando lhe trouxe no
aniversário aquelas folhas de plástico em forma de coração. Uns corações verdes
e outros vermelhos, longos tristonhos, todos estéreis, que ela recebeu com
fingido entusiasmo. A mulher sabia quão inábil era seu marido no manejo das palavras
e quão parcimonioso era com os gestos de ternura. Ela sabia que expressão
tamanha de carinho ele jamais repetiria. O beijo, então, com que agradeceu,
apesar de tudo, era de gratidão verdadeira. No centro da mesa, solitário
altaneiro, o antúrio reinou por uma semana, tempo que levou para envelhecer e
tornar-se insuportável à visão. Foi por isso parar no canto mais escuro do
cômodo, onde sua velhice passasse despercebida.
Heitor, a quem a mudança de lugar não pareceu abandono, tomou-se de
afeição pelas flores sem vida e esperava com ansiedade as efemérides familiares
para presentear Alice com um vaso de violetas de morim engomado e tingido.
Em uma passagem de vários trinados sucessivos, a mulher mal notou a
tremura das pernas do marido. Já era quase impossível perceber os movimentos
mais sutis de Heitor por baixo do lençol. Estava na hora de acender a lâmpada,
mas o comutador ficava fora do alcance de seu braço.
No fim do adágio, Alice arriou os braços, em repouso. Heitor estava
paralisado e tenso. Ele sabia tratar-se tão-somente de uma pausa prolongada, o
fim do adágio, mas também podia ser a rendição de Alice: o fim de suas forças.
Esperava sem respirar, concentrado. Finalmente soaram as primeiras notas do
andante: vigorosas, vibrantes, quase marciais. Protegido pela noite, Heitor
descobriu a cabeça e relaxou os músculos. Seus olhos procuravam fraquezas onde
pudesse se exercitar. Na testa de Alice o suor porejava, sem que ele
percebesse. A mão direita já não sentia o arco, mas ela continuou a tocar. Um
pingo de suor que se formara no sulco da testa desceu indeciso pelo rosto e se
precipitou no chão ao mesmo tempo em que uma nota aguda e seca bateu no peito
do homem.
O dedo anular da mão esquerda, de
todos o mais fraco, recusou-se a obedecer ao comando de Alice e a nota saiu
falha. Heitor soergueu-se ameaçador brusco, esperando seu momento. Seu gesto,
contudo, acendeu os restos de energia que Alice mantinha escondidos por baixo
de sua decisão. Vibrou com mais força o arco, exagerando o sentido marcial do
movimento, e, apesar das lágrimas misturadas ao suor, que a noite escondia,
convenceu o marido de que a nota falha fora apenas um descuido. Em seguida
ouviu tombar sobre o colchão de molas fracas o corpo prematuramente avelhantado
de Heitor.
Adiante alguns compassos, nova pausa com alguns segundos de repouso.
Entrava então a sonata num remanso, o largo, com suas notas prolongadas e
leves, um movimento que exigia muito pouco esforço em sua execução. Alice
percebeu quando Heitor enfiou o rosto no travesseiro, como se fosse dormir. O
arco, de tão leve, mal roçava as cordas. A melodia, apesar de um pouco triste,
era calma, como se, ao cabo de tanta luta, a espera do fim inevitável trouxesse
sossego e paz.
O quarto acabou de sumir na escuridão que entrava pela janela. Alice
executava ainda alguns compassos, lentos, de agudos gemidos fazendo contraponto
a notas mais graves. Era um duo desconhecido, música jamais ouvida por Heitor,
que, perplexo, sentou-se na cama. Os sons mais graves tinham uma vibração humana,
como se fossem formados nas entranhas de sua mulher.
Intrigado, Heitor acendeu a luz ainda a tempo de ver a esposa
dissolvendo-se, transformada em fachos luminosos de sons que se desprendiam de
seu corpo, tornando o ar mais denso, colorido e quase irrespirável. Sua roupa
de luz, de passagem, enganchou-se no vaso de antúrio, que, arrastado, partiu-se
no piso frio.
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