Paisagem do pequeno rei
Mastigando ainda restos do desjejum, sem pensamento nenhum em sua cabeça, Juninho levantou-se da mesa e grudou a testa no vitrô fechado: seu modo de espiar aquele mundo que se mantinha escondido por trás das paredes. Pela boca aberta em cilindro, divertiu-se algum tempo expelindo o bafo quente com que embaçou pequeno círculo na vidraça transparente. E meio que riu, satisfeito com tal poder, o de cobrir a parte que quisesse do terreiro com sua cerração, aquele bafo que lhe subia do peito. Para além da janela, no fundo, a inundação de azul de um céu despenhadeiro: uma vertigem. Bem ao fundo, a inundação de azul, onde um rebanho de alvos cirros se deixava singrar por alguns pontos pretos movediços - pequenos e trágicos pontos finais - que, uns atrás dos outros, desenhavam largos e lentos círculos. Alheio ao significado do que ultrapassava os muros de seu terreiro, o menino desenhou, com a ponta do dedo, um grande jota arredondado: exercício necessário da própria afirmação. No gancho da letra, seus olhos enquadraram, no recanto mais afastado do terreiro, o imenso flamboiã de tronco rugoso, já meio decrépito, no exato momento em que um bando de maritacas marulhentas alçou vôo e mergulhou no céu, deixando a árvore, com seus galhos retorcidos, inteiramente desfolhada.
Mastigando ainda restos do desjejum, sem pensamento nenhum em sua cabeça, Juninho levantou-se da mesa e grudou a testa no vitrô fechado: seu modo de espiar aquele mundo que se mantinha escondido por trás das paredes. Pela boca aberta em cilindro, divertiu-se algum tempo expelindo o bafo quente com que embaçou pequeno círculo na vidraça transparente. E meio que riu, satisfeito com tal poder, o de cobrir a parte que quisesse do terreiro com sua cerração, aquele bafo que lhe subia do peito. Para além da janela, no fundo, a inundação de azul de um céu despenhadeiro: uma vertigem. Bem ao fundo, a inundação de azul, onde um rebanho de alvos cirros se deixava singrar por alguns pontos pretos movediços - pequenos e trágicos pontos finais - que, uns atrás dos outros, desenhavam largos e lentos círculos. Alheio ao significado do que ultrapassava os muros de seu terreiro, o menino desenhou, com a ponta do dedo, um grande jota arredondado: exercício necessário da própria afirmação. No gancho da letra, seus olhos enquadraram, no recanto mais afastado do terreiro, o imenso flamboiã de tronco rugoso, já meio decrépito, no exato momento em que um bando de maritacas marulhentas alçou vôo e mergulhou no céu, deixando a árvore, com seus galhos retorcidos, inteiramente desfolhada.
Grupo remanescente de
andorinhas sobrevoou o terreiro - as claras penas do peito quase roçando os
galhos mais altos da árvore praticamente nua. Talvez uma despedida, véspera da
grande viagem. O menino olhou as andorinhas, o flamboiã, olhou as maritacas,
distante e indiferente. Ele olhava com a boca aberta, olhava com as mãos
espalmadas na vidraça, com os olhos, olhava com o corpo todo, mas nada
entendia, porque tinha o olhar bronco de quem ainda não aprendera a possuir as
coisas a distância.
Só ao ver o passarinho
pular do nada para o meio da galharia é que se agitou um pouco mais. Como um
chumaço de algodão embebido em mercúrio cromo, saltitando com vivacidade de um
galho a outro, ágil, certeiro, encheu os olhos do menino, que, deslumbrado,
apressou-se a limpar com as duas mãos a vidraça embaçada. Mas o que era aquilo,
aquela pequenina bola púrpura, tão cheia de vida e de vontade própria? Gritou
com estridência, chamando o irmão, para que viesse ver o que nunca tinham visto
nem sabiam que em algum lugar existisse. O irmão terminava calmamente de tomar
seu café com leite e não se moveu na cadeira. Juninho insistiu, aflito,
parecendo-lhe aquela uma oportunidade única na vida, primeira e última. O
pensamento foi-se, então, formando devagar, um grande círculo, como um remanso
do ar em volta do terreiro, das árvores, um remanso lento, mas irreprimível. Um
espetáculo que era seu, tão-somente seu. Além do irmão, a mais ninguém
permitiria seu desfrute. Mas aquilo não chegava a ser um pensamento, porque ele
apenas o sentia, embora com o corpo todo.
- Mas onde?!
Dois vidros acima, o
irmão, impaciente, nada via além do que sempre ali estivera: as árvores, a
pequena horta, um galpão coberto com folhas de zinco, uma gangorra e alguns
trastes inumeráveis e invisíveis, de tão
fixos na paisagem.
O menino gritou que no
flamboiã, cada vez mais aflito, porque agora ele também nada via e
relampejou-lhe a sensação quase insuportável da perda mesmo antes da posse. E sacudia
as mãozinhas gordas preparando o choro.
Como se o mundo, de
repente, estivesse a se apagar, o menino pensou com urgência.
- Lá!
Ele gritou com o dedo
teso, quase furando a vidraça. Tinha acabado de rever, fascinado, a pequena
bola vermelha a saltitar. Então, em pânico, vislumbrou o perigo: o passarinho
não estava preso dentro daquela cena, que, de um momento para outro, poderia
dissolver-se.
-
Eu que vi primeiro. Ele é meu!
O irmão não percebeu logo
o sentido daquelas palavras proferidas com tamanha veemência e confirmou que
sim, que era dele, e que ninguém, por enquanto, ameaçava privá-lo do que era
seu. Ele não sabia que o pequeno jamais aprenderia a dispor de tudo com todos,
pois era do tipo que só consegue sentir que é seu quando possui sozinho, sem
partilhar com mais ninguém. E por não conhecer o próprio irmão é que tentou
ainda por algum tempo mostrar-lhe o quanto é de todos aquilo que, a princípio,
parece de ninguém.
Mas não é isso, foi a
resposta exasperada que o som estrepitoso do sapateado abafou. O cabelo
empastado na testa suarenta era sua irritação com a conhecida conversa de enganar,
que já adivinhava: depois ele esquece. Não é isso. Meu é o que minha mão
segura, seus membros agitados como em espasmo, por causa do medo.
Só aos poucos a compreensão foi-lhe penetrando
venenosa. Suas propostas não demoviam o menino, cujo torvo olhar ameaçava
sorver a paisagem toda: meu é na minha mão. Nem o canarinho da terra,
estralando na gaiola, nem o hamster acrobata, que tanto o encantava. Nada.
Quase certo que já os considerava seus. Necessidade nenhuma de barganha. Meu é
na minha mão. E esperneava barulhento.
O corpo tenso
ligeiramente inclinado para a janela, estúpido e esperançoso, Juninho acompanhou
o imergir de seu irmão na loira claridade do terreiro. A expectativa machucava-lhe
os músculos, mas a dor não o distraía. Sentia-se ligeiramente compensado das
aflições ainda há pouco vividas, ao enquadrar na mesma cena o passarinho
vermelho, nos galhos do flamboiã, e seu irmão, gestos atávicos de caçador,
esgueirando-se rente ao muro, corpo em arco, longas esperas de cócoras - o
estilingue preso pelas extremidades. Compensado, mas temeroso, ainda, com a
possibilidade de uma fuga repentina, definitiva. O suor, por isso, porejava-lhe
no buço, na testa, empastava-lhe o cabelo da nuca. Meu é na minha mão, sentia
cansado mais do que pensava. Mas é meu,
parecia responder seu olhar vitorioso, logo depois, ao olhar acusador do irmão,
quando este, assomando à porta da cozinha, entregou-lhe nas mãos o passarinho.
É meu. E reparou, enquanto lhe assoprava as penas, que visto de perto era ainda
mais belo do que de longe, apesar da flacidez do pescoço de onde pendia inerme
uma cabecinha inútil.
(Do livro À sombra do cipreste - Editora Global)
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