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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Um conto inédito.

Nossa perna

        Não há sol debaixo deste caramanchão além das pequenas manchas redondas sem grande serventia para calor. Me distraio com elas, que se movem ao sabor da brisa, muitas vezes as perco, mas quase sempre as reencontro. Passei assim a vida inteira:  tentando reter nas mãos abertas pequenas manchas de luz, que perdia agora para encontrar mais tarde. A Moema sempre dizia: Você parece que tem as mãos furadas. Lutamos a vida inteira juntos e agora temos o costume de juntos descansar debaixo deste caramanchão. Minha velha respira como se estivesse fingindo viver, aqui do meu lado, com suas mãos ocupadas com a lã e as agulhas. Às vezes aproveitamos estas horas da tarde, enquanto descansamos, para pensar na morte, que não deve andar muito longe, mas o vazio, nestas ocasiões, torna-se tão grande que raramente dedicamos muito tempo a considerações sobre o futuro. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue consta da coletânea A coleira no pescoço, editada pela Bertrand Brasil, em 2006. 
De pombos e gaviões: suas distâncias

Nossa vila fica num remanso da estrada, que então se alarga, ali, no largo. O armazém baixo, atarracado - uma só porta aberta, estreita escura, duas janelas feito olhos vazados, diversos telheiros e galpões - cara a cara com a igreja branca, pesada, de janelas azuis. Entre os dois, a cruz de braços abertos enegrecidos sobre pequena pirâmide de pedras cobertas de musgo: salve sua alma, ela proclama sem grande utilidade. 

Depois, pouco mais de uma dezena de casas agachadas por debaixo das árvores - pobres, encarquilhadas - de janelas quase sempre fechadas e paredes encardidas de terra e tempo. E as árvores. Sujas de poeira, as árvores da beira da estrada.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Um homem apenas

 Um rabecão invadiu nosso campinho, e paramos para descobrir o que poderia estar acontecendo. Logo depois, uma viatura policial seguiu o mesmo caminho, e ambos, a ambulância e o rabecão, foram parar ao pé da escada da casinha do velho, na parte mais alta da ladeira.

Não tínhamos um campinho plano, como a turma do quarteirão mais pra baixo, mas nosso gramado em declive era da melhor qualidade. Meio tempo ficávamos chutando para cima, contra todas as leis da natureza; meio tempo chutávamos para baixo, e todos os santos nos ajudavam. Além do nosso gramado, contávamos como uma de nossas vantagens sobre os adversários do outro quarteirão a existência daquela casinha misteriosa e avulsa na parte mais alta de nosso campo, uma casa de madeira construída sobre pilares muito altos de pedra a tijolo.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

       O Gorro do Andarilho

- Me dá! – repete com voz envelhecida e olhos grisalhos, sem brilho.
Como resposta, uma gargalhada sem dentes e de barba suja, desgrenhada.
Seu gorro de lã, como um sol colorido na cabeça do Gordo, foi a primeira coisa que viu quando acordou. Então pediu uma primeira vez, a mão teimosa estendida. Era seu gesto antigo, de sete anos, repetido desde a perda do emprego e da família, quando se viu sem lugar onde dormir, senão os ninhos que fazia com a noite escorregando do céu. Ali mesmo, na beira da estrada, ou debaixo de qualquer ponte, abrigado.
Não gostava do Gordo, porque falava demais com sua boca e contava umas histórias de vida que não poderiam ser dele. Era um mentiroso ocupando lugar nos acostamentos. E andava rápido, com seu tamanho, como se tivesse aonde chegar. Não gostava. Além de mentiroso, era abusador, por se julgar um maioral. Pois apesar da ojeriza pelo companheiro, não era a primeira vez que partilhava com ele seu almoço debaixo daquela mesma gameleira.

sábado, 26 de janeiro de 2013

O ENTERRO DE OSMAR BELMONTE (conto)

*Este conto nunca foi publicado em livros

Com passo escuro e lento, pesado como a tristeza, por estar debaixo de um sol de verão para cumprir o ritual da despedida, o cortejo movimenta-se já perto do cemitério. Sua a idéia de um cortejo a pé: três quarteirões apenas, pois desde sempre moraram naquela casa à beira do cemitério. O que não contava era com o sol do meio da rua e perto do meio-dia, porque nas calçadas, de ambos os lados, havia árvores que protegiam os transeuntes da aspereza do sol. Mas eles não eram transeuntes e cortejo não se faz na calçada.
Letícia olha para um lado e outro, olha para trás, impaciente, olha sem parar. Seu olhar apojado de ansiedade corre na frente, vai até a porta do cemitério e volta rastejante, queimando-se nos paralelepípedos escaldantes.
No bar, à direita, alguns fregueses amontoam-se e espremem-se na porta, querendo ver. O cortejo pelo meio da rua, cada um sobre seus próprios pés, o cortejo é um fato inusitado, que vale a pena ser visto. E lá dentro, entre os fregueses, corre a pergunta, Mas quem é ele?, e apenas o dono, por trás do balcão, responde com sua voz gorda e estragada que é um vizinho ali de baixo, um velho doente.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Paisagem do pequeno rei                                                                           
Mastigando ainda restos do desjejum, sem pensamento nenhum em sua cabeça, Juninho levantou-se da mesa e grudou a testa no vitrô fechado: seu modo de espiar aquele mundo que se mantinha escondido por trás das paredes. Pela boca aberta em cilindro, divertiu-se algum tempo expelindo o bafo quente com que embaçou pequeno círculo na vidraça transparente. E meio que riu, satisfeito com tal poder, o de cobrir a parte que quisesse do terreiro com sua cerração, aquele bafo que lhe subia do peito. Para além da janela, no fundo, a inundação de azul de um céu despenhadeiro: uma vertigem. Bem ao fundo, a inundação de azul, onde um rebanho de alvos cirros se deixava singrar por alguns pontos pretos movediços - pequenos e trágicos pontos finais - que, uns atrás dos outros,  desenhavam largos e lentos círculos. Alheio ao significado do que ultrapassava os muros de seu terreiro, o menino desenhou, com a ponta do dedo, um grande jota arredondado: exercício necessário da própria afirmação. No gancho da letra, seus olhos enquadraram, no recanto mais afastado do terreiro, o imenso flamboiã de tronco rugoso, já meio decrépito, no exato momento em que um bando de maritacas marulhentas alçou vôo e mergulhou no céu, deixando a árvore, com seus galhos retorcidos, inteiramente desfolhada.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto abaixo foi publicado no livro A COLEIRA NO PESCOÇO, editado pela Bertrand Brasil.

Aquele primeiro dia, quase noite

O filho não acordou em janeiro de manhã, agora, quando o calor torna-se mais intenso. E o modo roxo como apertava os lábios um contra o outro podia não significar coisa alguma, mas a mãe acertadamente interpretou como sendo a recusa.  A despeito de muda, e inexplicável, uma recusa. E exatamente de sua túmida teta materna. Paciente e concentrada recolheu o seio para o interior de seus trapos e sem cansaço foi abrir a janela, como se estivesse acabando de criar o mundo. O sol entrou circular, reparando, mas era um signo exageradamente genérico para que ela chegasse a qualquer conclusão sensata. Debruçou-se no parapeito, para cumprir o rito, talvez até um pouco avidamente, atraída pela claridade da paisagem ainda úmida do útero noturno, e sentiu a vazão do próprio leite que o peso do corpo começava a ofertar. Uma vazão lenta e silenciosa como uma urina: o prazer do alívio. Então seus olhos maravilhados mediram aquelas duas manchas redondas no alto de seu peito: a alegria.