domingo, 24 de fevereiro de 2013

FRAGMENTO DE UM ROMANCE JUVENIL

O fragmento abaixo é do romance juvenil Como peixe no aquário, publicado em 2004 pela Edições SM.


Todos os sacrifícios que teve de suportar, os sustos de todos os dias, os olhos abertos do remorso e as noites de insônia, teriam valido a pena? A resposta está lavando-se na pia dos fundos. Meio corpo enfiado no balcão, Rita ouve imóvel as gargalhadas da água. 


Seu Filinto volta dos fundos enxugando ainda as mãos uma na outra, como se estivessem molhadas, forcejando por eliminar de seus pensamentos qualquer idéia iníqua. Mas seu rosto vermelho é o mesmo da chegada, com o semblante refulgente e vitorioso. Ao passar por trás de Rita, diminui o passo e a mede por baixo da roupa, imaginando. O pensamento da balconista encolhe-se porque ela adivinha-se devorada. Então ele pára e pergunta:


- Ninguém me telefonou?

Entontecido pela imaginação, seu Filinto continua seu caminho por trás do balcão até sentar-se na banqueta que às vezes usa, principalmente quando pretende perder algum tempo examinando papéis ou conferindo o caixa. Rita sente o rosto em brasa, toda ela muito desconfortada com a expectativa do próximo ato. De uma distância muito grande chega-lhe a voz do patrão, uma voz sem cor nem eco, meio frouxa, que fica pulsando em seus ouvidos, contínua como acorde de um órgão desafinado. Na boca, um gosto de água salobra causa-lhe náusea.

- Algum problema, dona Rita de Cássia?

Ela percebe finalmente que precisa responder alguma coisa.

- O senhor falou comigo?

- Sim, eu perguntei se alguém me telefonou. Algum problema?

- Oh, não, ninguém ligou, senhor Filinto. 

A frase, quando lhe chega aos ouvidos, caída de um tempo inexistente, já é uma frase impura e sem uso diário, com aquela senhoria, muito diferente do modo como costuma tratar as pessoas. Por isso, fica ainda mais sem rumo, sem saber o que faz com as chamas do rosto. O patrão, contudo, que julga tratar-se de uma alegria de sua empregada, aquela brincadeira, reacende um brilho intenso nos dois olhos, que ficam presos na direção da funcionária. Uma pena que ela ultimamente venha arruinando sua imagem: o corpo muito magro, um rosto com sinais de velhice.

Desde março, vinham aqueles meses longos, a alma em fogo a macerar o corpo. Meses de medo e aflições. Rita definha e não pode contar com a ajuda de ninguém. É uma cruz de peso insuportável, mas ela sabe que é sua e que terá de arrastar aquilo tudo sozinha.

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