O fragmento abaixo é do romance juvenil Como peixe no aquário, publicado em 2004 pela Edições SM.
Todos os sacrifícios
que teve de suportar, os sustos de todos os dias, os olhos abertos do remorso e as noites de insônia,
teriam valido a pena? A resposta está lavando-se na pia dos fundos. Meio corpo
enfiado no balcão, Rita ouve imóvel as gargalhadas da água.
Seu Filinto volta dos
fundos enxugando ainda as mãos uma na outra, como se estivessem molhadas,
forcejando por eliminar de seus pensamentos qualquer idéia iníqua. Mas seu
rosto vermelho é o mesmo da chegada, com o semblante refulgente e vitorioso. Ao
passar por trás de Rita, diminui o passo e a mede por baixo da roupa,
imaginando. O pensamento da balconista encolhe-se porque ela adivinha-se devorada.
Então ele pára e pergunta:
Todos os sacrifícios
que teve de suportar, os sustos de todos os dias, os olhos abertos do remorso e as noites de insônia,
teriam valido a pena? A resposta está lavando-se na pia dos fundos. Meio corpo
enfiado no balcão, Rita ouve imóvel as gargalhadas da água.
Seu Filinto volta dos
fundos enxugando ainda as mãos uma na outra, como se estivessem molhadas,
forcejando por eliminar de seus pensamentos qualquer idéia iníqua. Mas seu
rosto vermelho é o mesmo da chegada, com o semblante refulgente e vitorioso. Ao
passar por trás de Rita, diminui o passo e a mede por baixo da roupa,
imaginando. O pensamento da balconista encolhe-se porque ela adivinha-se devorada.
Então ele pára e pergunta:
- Ninguém me
telefonou?
Entontecido pela
imaginação, seu Filinto continua seu caminho por trás do balcão até sentar-se
na banqueta que às vezes usa, principalmente quando pretende perder algum tempo
examinando papéis ou conferindo o caixa. Rita sente o rosto em brasa, toda ela
muito desconfortada com a expectativa do próximo ato. De uma distância muito
grande chega-lhe a voz do patrão, uma voz sem cor nem eco, meio frouxa, que
fica pulsando em seus ouvidos, contínua como acorde de um órgão desafinado. Na
boca, um gosto de água salobra causa-lhe náusea.
- Algum problema, dona
Rita de Cássia?
Ela percebe
finalmente que precisa responder alguma coisa.
- O senhor falou
comigo?
- Sim, eu perguntei se
alguém me telefonou. Algum problema?
- Oh, não, ninguém
ligou, senhor Filinto.
A
frase, quando lhe chega aos ouvidos, caída de um tempo inexistente, já é uma
frase impura e sem uso diário, com aquela senhoria, muito diferente do modo
como costuma tratar as pessoas. Por isso, fica ainda mais sem rumo, sem saber o
que faz com as chamas do rosto. O patrão, contudo, que julga tratar-se de uma
alegria de sua empregada, aquela brincadeira, reacende um brilho intenso nos
dois olhos, que ficam presos na direção da funcionária. Uma pena que ela
ultimamente venha arruinando sua imagem: o corpo muito magro, um rosto com
sinais de velhice.
Desde
março, vinham aqueles meses longos, a alma em fogo a macerar o corpo. Meses de
medo e aflições. Rita definha e não pode contar com a ajuda de ninguém. É uma
cruz de peso insuportável, mas ela sabe que é sua e que terá de arrastar aquilo
tudo sozinha.
*
excelente!
ResponderExcluirMuito obrigado!
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