sábado, 23 de fevereiro de 2013

LEITURAS NECESSÁRIAS

Há livros cuja leitura passamos décadas nos prometendo e, atropelados pelo tempo e suas exigências, vamos protelando até que chega uma hora que não dá mais.

É o que me vinha acontecendo com o Eusébio Macário. Camilo Castelo Branco, mais conhecido por seu ultra-romantismo, e Amor de perdição é seu ícone, por derrisão fez suas incursões pelo Naturalismo, de que o romance acima é um exemplo.

Ficava um pouco encabulado ao falar sobre essa aventura naturalista do autor aos alunos, mas ninguém percebia o funcionamento da minha consciência, ao me lembrar de que estava falando de um livro que desconhecia. Repetia apenas o que os manuais e livros didáticos afirmavam, sem ter comprovado na fonte.

Pois bem, livre de alguns compromissos de leitura, de alguns, não de todos, resolvi que, finalmente, tinha chegado a hora do boticário Eusébio. Minha sorte: os manuais e livros ditdáticos estavam certos. E isso se descobre já na primeira página, da qual extraio o texto exemplar abaixo.


Pág. 43 - "Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado em 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda como quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da triplicada cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira crassa e grossa de vaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a enastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, de um vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hécate de Shakespeare."
Glossário:

cornija - moldura sobreposta, formando saliências, que arremata a parte superior de uma parede, móvel, porta etc.
romeira - o dicionário dá como romãzeira, conceito que não se enquadra no contexto. Deve ser termo arcaico.
pescoceira - novamente um termo em desuso registrado no dicionário com significado sem sentido no contexto.
barrosã - termo não encontrado no dicionário.
enastrar - enfeitar(-se) ou tecer com nastros, fitas, entrelaçar
ginja -  pessoa velha, magra, ressequida, também o fruto da ginjeira (que nos parece caber melhor, pois a cereja-da-Europa como também é conhecida, é rubra).
hidrângea - hortênsia


O que há de naturalismo nesse parágrafo é a descrição que, em tudo, é depreciativa, most5rando o lado ridículo do ser descrito.
O propósito do Camilo de ridicularizar o Naturalismo, leva-o a cometer, intencionalmente, exageros grotescos que tornam a leitura extremamente divertida. É uma leitura agradável, fácil, e muito divertida.


Um comentário:

  1. Ah, não gostei. Prefiro o Camilo romântico. Amor de salvação e Amor de perdição. Se o tempo consagrou é porque é o melhor dele mesmo.
    Imagino que você conheça os contos do Eça.
    Um de meus preferidos, entre muitos é Singularidades de uma rapariga loura. ADORO!!!
    Aquele assim:
    Começou por dizer que seu nome era macário e que seu caso era simples...

    "Sempre passeio pelo seu blog, apenas não sei o que comentar nesse meio intelectual".

    ResponderExcluir

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