O conto abaixo está no livro A coleira no pescoço, editado pela Bertrand Brasil, em 2006.
Os sapatos de
meu pai
O dia começou completamente sexta-feira, pensei enquanto levava o saco de
lixo para a calçada. Um céu úmido chuviscava irritação sobre a cidade indefesa
e fria, obrigando-me a proteger o rosto do vento molhado e escolher o lugar
onde punha os pés. As lojas vizinhas também levantavam suas portas onduladas. Minha
rotina dos dias pares, nossa escala entre as balconistas.
A três passos do poste, junto ao qual deixaria minha carga, dois sapatos
largos e sujos, tamanhos, o direito esfregando-se na guia para se livrar do
barro. Meu sangue parou e todo meu corpo também. Só meus olhos mantinham alguma
vida, mas não ousavam subir além de dois palmos das pernas. O medo grudava-me
no céu da boca um gosto indeciso entre o morno e o frio. Qualquer coisa amarga
em uma colher: toma, minha filha, vai te fazer bem. Eram os sapatos de meu pai.
Por tudo que sei dele, eram os sapatos de meu pai.
Já não sei se o que me resta dele, de meu pai, são reminiscências minhas,
situações que eu mesma vivi, ou são as lembranças de minha mãe, casos que ela
me contava com olhos brilhantes, muitas vezes de lágrimas, outras vezes de pura
paixão.
Paralisada no meio do caminho, não conseguia desgrudar os olhos daquele
sapato embarrado esfregando-se na aguda quina da guia. A garoa apertava, mais
densa, e um pequeno córrego escorria pelo meio-fio. Quase alegre. A poucos
metros abaixo, entretanto, sem nenhuma resistência, despejava-se na
boca-de-lobo e sumia da face escura da sexta-feira. Lá embaixo.
Entre sombras e silêncios, nossas horas sempre passaram muito lentas. À
noite, principalmente, tínhamos apenas uma à outra para suportar o tempo, quando a televisão não nos pudesse ajudar. Um belo homem, ela me
dizia depois de um suspiro. A imagem que dele guardo é de um homem alto como
uma árvore, testa larga e olhos castanhos muito vivos. Um rosto liso, de beleza
quase feminina. Renovei durante muitos anos essa imagem na foto que minha mãe
mantinha escondida e que talvez ainda mantenha. Nunca mais a vi. Não que ela
tenha mudado o esconderijo, mas porque finalmente desisti de esperá-lo.
Ele chegava com os bolsos cheios de balas. Não era longe, a farmácia, e
ele enchia os bolsos do jaleco branco no supermercado que ficava em seu
caminho. Era assim que chegava. E me botava no colo para ver-me descascando as
balas com meus dedos aprendizes. Ria muito, então, como se estivesse muito
feliz. Ele tinha um sorriso de seu tamanho. Impossível imaginar que um dia não
quisesse mais esperar o almoço comigo sentada em seu colo. Desde esse dia, uma
das caixas do supermercado não apareceu mais em seu posto de trabalho. Só muito
mais tarde, minha filha, muito mais tarde. Minha mãe só percebeu a ausência
daquela moça muito mais tarde. Como se aquilo fosse um acidente, uma situação
provisória. Até hoje me parece que ela pensa assim.
Por muitos anos meu pai foi apenas um homem de jaleco branco. Até o
momento em que descobri uma fotografia escondida por baixo de papéis velhos no
fundo de uma gaveta da cômoda. Alguns lugares da casa me impunham medo e
respeito, eram santuários que não se podia profanar. Havia verdades interditas,
segredos que era melhorar ignorar. Guardei com cuidado a foto no mesmo lugar
onde a descobrira. Daí em diante, ele passou a ser personagem de uma paisagem
com árvores e alguns canteiros de rosas, como na orla de algum parque.
Quando via minha mãe perdida em seu olhar distante, dependurada e
sozinha, sentia medo de que também ela não encontrasse mais o caminho de volta.
Então grudava-me em sua mão. Conta, mãe, conta daquela vez em que fomos visitar
o zoológico, nós três. Ela me punha sobre suas pernas e começava a contar sem
pressa que a tarde estava muito clara, sem nuvens, porque era uma tarde de
primavera e que, depois de termos visto macacos e javalis, tigres e leões,
depois de termos visto búfalos sonolentos, aquelas montanhas sombrias que eu não
poderia entender, eu olhei para o céu azul e apontei soluçando o bando de
andorinhas, dizendo que sentia saudade
de pegar uma andorinha na mão. Então os dois riram de clara alegria, debaixo do
céu azul, numa tarde de primavera. E os olhos de minha mãe brilhavam de pura
paixão, ao recontar a história. Meu pai levantou-me no ar como se fosse
fazer-me voar e deu-me um beijo na testa. Tolinha, andorinhas não se pegam na
mão. E a brisa, que mal sacudiu os galhos das árvores, naquele momento,
anunciava o vento que traria as nuvens, antecipando a noite.
Sujo ainda, o sapato direito planta-se na calçada, plantado firme,
enquanto o esquerdo começa a mesma operação que me mantinha quase sem
respiração. De relance, embora, se o encarasse, poderia reconhecê-lo. Provavelmente.
Mas não tive coragem. O tempo sempre deixa rastros em seu caminho e o rosto
poderia ter-se camuflado. O córrego diminuiu, não passando então de um risco de
água que nem barulho fazia ao precipitar-se na boca-de-lobo. Senti minhas
pernas dormentes e tive medo de perder o equilíbrio.
Numa tarde em que lavava a calçada, tive aquela mesma sensação de que o
coração pesado jamais voltaria a funcionar. Aquele gelo amargo na boca. Um
homem alto, de pasta na mão, apertou a campainha aqui de casa. Abandonei
vassoura e mangueira onde estavam e entrei com as pernas e o coração em
disparada, gritando por minha mãe. Só podia ser ele, pensava enquanto corria, e
repeti em voz alta no fundo do quintal. Era um homem do censo, descobrimos em
seguida, com o coração quieto de tão murcho. Os sapatos de seu pai, minha
filha, você nunca viu aquele tamanho de sapatos.
Algumas vezes ainda me deixei enganar pelo desejo, quase sempre mais
forte do que os sentidos, até que, por fim, nunca mais procurei a fotografia
clandestina, no fundo da gaveta.
O gerente me chamava da porta da loja e eu, de onde estava, joguei o saco
de lixo na direção do poste. Sem erguer a cabeça. Não, agora não, ia pensando enquanto voltava para a loja,
agora não adianta mais, porque agora já sou.
Antes de entrar, ainda olhei para trás e percebi que os sapatos se
afastavam rapidamente. Apesar do esforço, continuavam sujos daquele barro que
era agora sua própria cor.
*
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