sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA


 Caminhos cruzados

"- Mais imunda do que as cadelas e as fêmeas dos javalis, tu prostituíste aos pagãos e aos heréticos um corpo que o Eterno fizera para ser um tabernáculo. E as tuas impurezas são tais que, agora que conheces a verdade, não mais podes unir os lábios ou juntar as mãos sem que a mágoa de ti mesma te nauseie o coração."

                                                                                                           Anatole France, Taïs.



*** VERÔNICA ***
Morena clara, 22 anos, olhos verdes, 54 kg, 1,60, cabelos lisos longos, lábios carnudos c/beijo, casta e recatada, porém linda e carinhosa, pronta para satisfazer suas mais ardentes fantasias e desejos. Um incêndio esperando por você. Tenho local de classe. Ligue agora para (015) 8228 4635 24h.
 
 
                                                                                       

 O jornal aberto sobre os joelhos e a dúvida zumbindo varejeira em torno da cabeça. Quente. Pegou o telefone, apreensivo - era um caminho desconhecido, talvez perigoso. Melhor esquecer o culto daquela manhã. Não conseguia. O suor de suas mãos molhava o aparelho. Não conseguia esquecer porque poderia ser acusado de omisso, no dia do juízo: o fogo eterno. Os sofrimentos do fogo eterno.

Do alto de seu púlpito, impávido e bíblico, um tanto patético, o pastor Jonas imprecava os pecados de toda natureza: longa lista. O domingo suarento e morno escorria pelo ralo da pia quase na hora do fogão. Sentado em uma das primeiras filas, ouvinte estratégico da palavra, Daniel tentava manter-se atento, ligado, mas não escutava mais o que mal ouvia, tudo muito difuso boiando na superfície de um sono celestial. Impossível romper sozinho com aquele torpor e o sermão parecia buscar a eternidade. Sem sofrimentos. A testa do pastor, brilhando com teimosia, era quase epifânica.                         

O sol oblíquo, que durante as últimas duas horas vinha castigando sucessivamente cada um dos fiéis em todas as fileiras de bancos, aos poucos desaparecia, abandonando o salão pelas altas janelas em forma de ogiva, silencioso e lento. Daniel sentiu que alguma coisa caminhava em sua mão esquerda apoiada sobre a coxa. Era uma cócega animal herdada de seus ancestrais, conhecida, um sinal de alerta enviado pela pele, por isso ele desceu o olhar vidrado até o lugar de seu corpo que o puxava de volta à Terra. A mão direita estralou um tapa sobre a esquerda que reboou no bojo do templo, mas a mosca conseguiu escapar e sumiu para o alto, onde tudo some, pois o alto assim como o baixo são regiões geralmente envoltas no mesmo mistério. Daniel percebeu então, em transe, que era o alvo do olhar desvairado do pastor, que, protegido por seu púlpito, ameaçava em altos brados com uma conclamação terrível: Todo aquele que deixa seu irmão trilhar os caminhos do pecado, ele dizia, sem lhe mostrar a verdade, braço erguido e pausa prolongada, é culpado de sua perdição. No dia do juízo terá de comparecer perante Deus e responder pela omissão. Ide, irmãos, e anunciai as boas novas àqueles que ainda não conhecem a palavra.

Aquela mosca, pensou Daniel enquanto discava o número escolhido no jornal, teria sido apenas um inseto? Sacudiu a cabeça incrédulo. Impossível desvendar os misteriosos desígnios divinos. 

 

                                                                      ***

 

Daniel entrou pisando sobre o silêncio da sala forrada de carpete e penumbra. Um lugar inteiro inexplicável, sua incompreensão. Assombrado de tanto arrependimento, só pensava em Deus, em cujo nome tinha vindo, e de cuja proteção dependia naquele ambiente do inimigo. Que pelo certo, agora, o agir correto, não podia desampará-lo. Sentou-se na poltrona funda indicada pelo dedo mudo da mulher de avental. Ficou sentado muito pequeno enquanto suas vistas iluminavam aos poucos o brilho dos móveis e os quadros e tapeçarias nas paredes. Era assim que imaginava o esplendor, as tentações da beleza. Então entendeu as dificuldades encontradas ao telefonar, nas várias vezes, todas aquelas recusas. 

O suor secava por baixo da camisa: o tempo nunca parava de escorrer.

Primeiro foi aquela iluminação toda, uma inundação de luz despencando sobre a sala assim de chofre, como um baque, uma pancada nos olhos de Daniel. Como um susto. E ele piscou prolongado, protegendo-se. Só então percebeu Verônica na porta e levantou-se meio sem jeito, melhor seria continuar sentado. Ela não precisou apresentar-se porque tinha o rosto e o corpo na medida exata de sua voz. E se cumprimentaram sérios uma vez que não havia necessidade de explicarem coisa nenhuma, um ao outro. Apenas apertaram-se as mãos. E isso bastou para que o jovem experimentasse o primeiro gosto de derrota, que é uma espécie de vertigem, ao sentir dentro da sua aquela mão delicada e macia, mas perigosamente quente.

Ide, irmãos, o pensamento firme no pastor Jonas e nas portas abertas da fornalha eterna, e anunciai as boas novas. Com tais auxílios foi que Daniel conseguiu finalmente recuperar-se para ouvir com humildade e resignação, no fundo da poltrona, que o tempo, meu caro, o tempo é artigo escasso, que acedera ao pedido, sim, para acabar com aquela insistência, mas que fosse breve na revelação prometida, porque havia compromissos a cumprir, agenda cheia.

O cerimonial da recepção, o luxo daquele ambiente, seu requinte, por fim, a entrada triunfal de Verônica, nada facilitava a missão que o trouxera até ali. Por isso, hesitou algum tempo, a bíblia espremida entre as mãos suadas. Sentada em sua frente, Verônica encarava-o quieta, esperando. Daniel levantou os olhos do carpete sem saber como começar. Jamais se imaginara tão perto do pecado, nem poderia supô-lo assim tão belo. As pernas de Verônica, meu Deus, aquelas pernas torneadas, de pele morena e pelinhos loiros. Cruzadas, como se uma buscasse proteção na outra. Virou o rosto, disfarçando, não querendo olhar, inteiramente perturbado. Então encontrou-se pendurado aos lábios da cortesã, carnudos, Deus do céu, pedindo beijos.

- Pois bem, seu Daniel, espero que sua revelação seja mesmo muito importante.

Vontade de desmaiar e sair carregado numa padiola, sem esforço das pernas, obtuso, sem necessidade nenhuma de dizer qualquer coisa. Uma vontade com marca em sua testa. Tinha consciência de que a simples contemplação daquele paraíso postado ali à sua frente, ao alcance de seu braço, já era pecado, mas os olhos pareciam ter comando próprio, o descontrole. Foi um instante muito breve, a duração daquela dúvida, um segundo de tontura e náusea. Só um instante, do qual foi salvo por outra mosca que lhe corria pelo braço. Não chegou a ver se ela fugia para o alto, onde tudo se esconde, ou para baixo, onde tudo termina. Vê-la, entretanto, renovou-lhe as forças e a coragem. 

- Irmã, Jesus te chama.

Verônica sorriu sua surpresa completa, um sorriso quase triste. Eu bem que imaginava, sacudindo a cabeça. Mesmo assim ouviu os apelos e admoestações.

- Mas o inferno está dentro de nós, não acha, seu Daniel?

Ele achava que não, que céu e inferno são o de cima e o de baixo, ambos feitos por Deus, sim, mas para selecionar. São poucos os escolhidos. Também não conseguia explicar tudo, porque Deus não revela seus desígnios divinos. A fé, irmã, independe de explicação.

Verônica levantou-se com o braço esticado, oferecendo a mão. Seu tempo regido por uma agenda.

Ao fechar a porta, fez uma careta impaciente e atravessou a sala em passo rápido.

 

                                                                     ***

 

Uma noite via-se perdido num imenso mangueirão lodoso escuro e coberto de esterco: não conseguia fugir dos porcos que o cercavam, porque era impossível firmar os pés no terreno escorregadio; outra noite estava preso em um chiqueiro fedorento, disputando espaço com um porco apenas, mas um porco enorme e de cerdas muito ásperas, que o empurrava contra as paredes de madeira podre. Acordava suando grosso pelo corpo e acendia a luz, transtornado. Os lábios trêmulos, ainda, lia alguma passagem da bíblia, que agora mantinha todas as noites de plantão sobre o criado-mudo, protetora, então voltava a dormir.

O cenário variava, mas era sempre um cenário sombrio, infecto, com porcos de olhos redondos e miúdos a encará-lo curiosos, às vezes com raiva, outras vezes com fome.

Dormir já estava sendo uma tortura de que Daniel tentava livrar-se. Banhos frios, café forte, caminhadas - tudo que lhe sugeriam. Sucesso nenhum. Quando não resistia mais de olhos abertos, ajoelhava-se rendido ao lado da cama e pedia a Deus, de cima de seus próprios joelhos, que afastasse de seu sono aquelas visões em que os lábios e as coxas de Verônica fugiam-lhe às gargalhadas até que ele, perdido, começasse a escorregar no esterqueiro dos porcos, o corpo macerado por uns galhos retorcidos e desfolhados. 

Fugir do mal, irmão, não é vencê-lo,  admoestava severo o pastor Jonas. Um servo de Deus deposita confiante sua vida nas mãos do Altíssimo e nada mais pode quebrantá-lo. E Daniel continuava com aquelas visitas perigosas, pelo menos uma vez por semana. Juntos liam a bíblia, tomavam café com leite, falavam de suas vidas particulares. Muitas vezes chegavam a rir do mundo e seus caminhos de pecado. Até o dia em que Verônica concordou em acompanhá-lo ao culto. Era um domingo frio de agosto, e ela apareceu com um costume escuro coberto por rico mantô xadrez de listras pretas sobre fundo cinza. Todos comentaram a discrição e a elegância daquela moça de  tão rico aspecto que apareceu em companhia do irmão Daniel. 

No primeiro domingo em que Verônica entrou sozinha na igreja, o próprio pastor veio dar-lhe as boas vindas. Cerimonioso, mas contente. A conversão de uma alma extraviada é sempre recebida com festas pela congregação. A ovelha desgarrada, voltando ao aconchego do redil, refaz o caminho do filho pródigo. É motivo de júbilo. Verônica deslumbrava-se com a recepção carinhosa de seus mais recentes irmãos, todos querendo protegê-la do mundo, um conforto que parecia uma suavidade, uma alegria desconhecida, como ela descobriu.

 

                                                                      ***                    

 

Seu olhar vermelho andava à frente de Daniel, luminoso, anunciando seu desejo. A própria Verônica veio atendê-lo à porta e leu a verdade que a brutalizava, invasora. Cumprimentaram-se, então, como dois estranhos ocupados em negócios. Ele aceitou o convite para entrar, com saudade da sala onde se conheceram há pouco menos de um ano e de onde sumira nos últimos meses, acossado por varas inteiras de porcos, malditos porcos que se haviam instalado em seus sonhos. E agora, por causa do sumiço, os porcos apareciam a qualquer hora do dia.

Enquanto se encaminhavam para suas poltronas, a moça tentou um sorriso de defesa e disse-lhe que todos sentiam sua falta nos cultos dominicais. As mesmas poltronas, reparou Daniel ao afundar o corpo trêmulo. A sala, entretanto, parecia muito mais despojada, por isso maior. O jovem perguntou-lhe se podia considerá-la incluída entre aquele "todos" e ela entendeu a intenção da pergunta, por isso desviou os olhos, pudica, o rosto ruborizado. Sim, claro, pois fora ele o enviado de Deus para a salvação de sua alma. Dívida que jamais poderia pagar. Daniel, disposto às negaças da sedução, retrucou que sim, poderia pagar, e o preço ela bem sabia qual era.

Não mais aqueles lábios de carmim, pedindo beijos, nem as pernas cruzadas como se uma buscasse proteção na outra. Toda ela escondida com recato, por isso mesmo ainda mais apetecida. Vê-la ali sentada à distância de um braço, ouvir sua respiração, sentir seu cheiro de fêmea, tudo isso começava a latejar na cabeça de Daniel, que se sentia arrastado por um vórtice desconhecido, uma força irresistível.

O jovem levantou-se de um salto e jogou-se de joelhos abraçado às pernas de Verônica. Assustada, a moça tentava desvencilhar-se de Daniel, que, agarrado a suas pernas, implorava-lhe com voz febril, desvairado, que ela lhe aplacasse aquela fome voraz, que lhe apagasse aquele fogo devorador, que o salvasse das chamas do inferno. Verônica empurrava sua cabeça que procurava a fonte de todos os males, perguntando mas como, mas como posso fazer isso? Uma última vez, implorava Daniel, soluçante, uma última vez. Então sumiria para sempre.

Verônica livrou-se finalmente daqueles braços doentes de fome e levantou-se.

- Se o senhor não for embora, chamo a polícia!

Ajoelhado, como estava, Daniel continuou algum tempo ofegante, soluçando, dizendo baixinho que ele já ia, eu já vou, prostrado, o olhar sem luz alguma.

 

                                                                      ***

 

Todos os domingos, desde aquela primavera, os irmãos, reunidos, acreditavam em coro na história da viagem. O irmão Daniel morava agora com os pais, numa cidadezinha do interior.
Verônica foi a única a reconhecer aquele anúncio no jornal, mas guardou o segredo na mesma caixa de seus remorsos.

 


    *ADÔNIS
Bonito, moreno jambo, olhos castanhos, 23 anos, 1,85m, corpo malhado, capa de revistas como modelo e hiper dotado. Atendimento VIP para homens, mulheres e casais, c/satisfação garantida, de Seg. a Sex. após 18:30 hr. e aos Sab. Dom. e feriados 24 Hrs. Sigilo absoluto e requinte. (015) 8234 1731. Falar c/Dani.
 
                                                                  *

Do livro A coleira no pescoço, publicado pela Bertrand Brasil em 2006.
 
 
 
 
 
 
 
 
 


 

 

 

 

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