Nenhum de nós, do internato, podia dizer de onde caíra
aquela figura singular, o nosso professor de Português. O professor Brandão
(ou, como preferia o Diretor do colégio, o doutor Brandão) falava com esses e
erres muito diferentes dos nossos, andava com passos mais curtos do que nós e
tinha um ar sofrido que nós, entre os dez e os quinze anos, ainda não tínhamos
razão para ostentar.
Algumas informações, finalmente, vazaram. Por exemplo, que nosso professor de Português era advogado. E a imaginação da rapaziada excitava-se em exercícios que justificassem aquele súbito aparecimento. Um dia, o pai de um aluno, em visita ao colégio, abordou nosso professor e perguntou se poderia assumir uma causa no fórum local. O professor Brandão ergueu para o céu seus dois olhos negros e redondos e, depois de um suspiro, afirmou em voz abafada que advogar, não, jamais voltaria a fazê-lo. Sua expressão, então, foi de profunda dor.
Nunca ficamos sabendo por que o doutor Brandão abandonara a
profissão para a qual se preparara. Muitas pessoas, mais tarde aprendi, cometem
o equívoco de levar um curso até o fim pela única razão de o haver começado. As
vocações nem sempre se manifestam muito cedo. Mas o caso do doutor Brandão, que
supúnhamos ter exercido a advocacia por muito tempo, parecia bem mais
tenebroso. Algum deslize, uma escorregadela, coisa nem sempre provável, mas
quase sempre possível para um ser que luta pela sobrevivência neste conturbado
mundo de deus? Não sabíamos, mas conjeturávamos. Alguém trouxe de fora a
informação de que se apossara, nosso cândido professor, de todos os bens de
duas crianças órfãs. Foi quase uma semana de ódio e rancor. Ele não podia
entrar na sala de aula sem que rosnássemos de cabeça baixa. Por uma série de
detalhes, descobrimos, à luz de velas em nosso esconderijo, que era uma
informação falsa. Ah, sim, porque também havia os alunos que o admiravam.
O professor Brandão era casado, e sua esposa, uma
normalista, como então eram chamadas as professoras primárias, dava aulas nas
séries anteriores ao ginásio (que era esse o nome do atual Ensino Fundamental 2
– não ficou mais bonito? Fundamental!, isso não é pra qualquer um). Eles não
tinham filhos, e esse era outro motivo de assombro para nós, tão acostumados a
famílias de proles numerosas, pois era assim que Deus mandava e o Brasil
queria.
O que mais nos espantava, entretanto, era o ar de grande
sofrimento de nosso professor quando tentava explicar as diferenças entre um
verbo e um advérbio. Ele segurava o giz sem muita convicção, enrugava a testa,
sacudia a cabeça e botava algumas palavras na lousa (que chamávamos de
quadro-negro, porque o era realmente). Mas ele gostava de ler. E trazia poemas
para que lêssemos e perguntava quem freqüentava a biblioteca, o que
encontrávamos lá. Ouvíamos algumas histórias e às vezes contávamos algumas também.
Até o fim do primeiro ano, ninguém mais queria saber a
origem do professor Brandão, nem por quais mistérios da vida um homem tão
diferente dos outros que conhecíamos viera parar ali. Meu entusiasmo pelas
fórmulas da matemática arrefeceu em favor de Mário de Andrade e Cecília
Meireles. Nunca entendi por que essa aproximação em suas preferências, mas isso
pouco ou nada me preocupou.
Quarenta anos mais tarde fui fazer uma visita ao colégio
onde estudei interno. O prédio principal era ainda o mesmo, apesar da cor
horrível com que o disfarçaram. Fui apresentado a outros prédios mais recentes.
Uns intrusos. Os professores todos pareciam tão estranhos quanto nos parecera,
no início, o professor Brandão. E ele, onde estaria? Ninguém sabia de sua
existência. Não desisti enquanto não o encontrei. Ele estava colado, muito
miúdo e assustado, em um quadro de formatura. Quanto a mim mesmo, descobri que
não havia deixado o menor vestígio de minha passagem por lá. Em que espelho,
Cecília, ficou perdida minha face?
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