domingo, 31 de março de 2013

FRAGMENTO DE UMA HISTÓRIA INFANTIL

O fragmento abaixo é do livro infantil Gambito, publicado pela Edições SM em 2005, com ilustrações de Pepe Casals.


Quando resolvemos dar uma espiada no Gambito, aproveitando a lanterna que estava com o Maurício, as duas meninas quiseram ficar sozinhas no alpendre. Que isso de bicho era a coisa mais boba do mundo. Fiquei com muita raiva da minha prima.


- Menina babaca - eu resmunguei enquanto descia os degraus da escada.

Minha prima é mais nova do que eu uns dois, três anos, mas é muito babaca mesmo. Ela ouviu o que eu disse e entrou correndo na sala, fazendo cara de choro. Acho que foi contar pra mãe dela o que eu falei. Só sei  que em seguida a tia Zilda botou a cabeça pra fora da porta e gritou pelo Eduardo e o Claudio.

- Claudio, Eduardo! - a voz dela era aguda que me doía nos ouvidos - Vocês estão fazeno arte, é?

Eu sou criança, mas não sou besta. Entendi muito bem que ela falou aquilo foi pra mim. Mas a gente já estava descendo para o galpão e descendo nós continuamos.

O forno ficava bem debaixo da sombra da laranjeira, por isso estava tão escuro. O Maurício acendeu a lanterna e deu uma alumiada em volta. O mundo, no escuro, parece outro, com sombras e seres que não existem na luz. Meu irmão sempre me diz que isso é uma bobagem, que tudo que existe, existe na sombra e na luz. Eu acho que não. Na sombra tudo parece diferente, mais feio.

Fizemos de um balaio velho, duas telhas ocas e uma pedra as nossas cadeiras, e nós quatro sentamos na frente do forno, meio amontoados, fechando a saída. O Maurício tinha a lanterna na mão, mas quem podia abrir a porta do primeiro andar era eu, que era o dono do Gambito. A gente não fazia muito barulho, pensando que ele estivesse dormindo, então só se ouvia cochicho.

Tirei a primeira tábua com cuidado e espiei pra dentro: escuridão. Quando tirei a segunda, meu irmão deu uma iluminada rápida lá dentro e me pareceu ter visto algum movimento. Não era nada. Só as sombras que se moveram. Por fim, tirei a terceira tábua escancarando a porta. Ficamos nós quatro espiando ao mesmo tempo. Foi então que vi: lá no fundo, trêmulo, com os dois olhinhos muito assustados, eu vi o Gambito e acho que entrei na cabecinha dele porque senti exatamente o que ele estava sentindo. Vendo pelo lado dele, nós quatro éramos quatro monstros enormes, com olhos do tamanho de laranjas e cabeças maiores do que melancias. Uns monstros. E ele tremia de pavor, encolhido num canto sem ter para onde fugir. Ele só esperava nosso ataque fulminante, então decerto abriria as asinhas, o bico, se debateria um pouco, pois não tinha outra coisa a fazer.

Eu estava quase chorando quando pedi ao Maurício:

- Desliga esta merda, vamos fechar isto aqui e deixar o Gambito em paz.

Eu vi o pavor nos olhinhos dele.


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