O fragmento abaixo é do livro infantil Gambito, publicado pela Edições SM em 2005, com ilustrações de Pepe Casals.
Quando resolvemos dar uma espiada no Gambito, aproveitando a lanterna que
estava com o Maurício, as duas meninas quiseram ficar sozinhas no alpendre. Que
isso de bicho era a coisa mais boba do mundo. Fiquei com muita raiva da minha
prima.
-
Menina babaca -
eu resmunguei enquanto descia os degraus da escada.
Minha prima é mais nova do que eu uns dois, três anos, mas é muito babaca
mesmo. Ela ouviu o que eu disse e entrou correndo na sala, fazendo cara de
choro. Acho que foi contar pra mãe dela o que eu falei. Só sei que em seguida a tia Zilda botou a cabeça pra
fora da porta e gritou pelo Eduardo e o Claudio.
-
Claudio, Eduardo! -
a voz dela era aguda que me doía nos ouvidos - Vocês estão fazeno arte,
é?
Eu sou criança, mas não sou besta. Entendi muito bem que ela falou aquilo
foi pra mim. Mas a gente já estava descendo para o galpão e descendo nós
continuamos.
O forno ficava bem debaixo da sombra da laranjeira, por isso estava tão
escuro. O Maurício acendeu a lanterna e deu uma alumiada em volta. O mundo, no
escuro, parece outro, com sombras e seres que não existem na luz. Meu irmão
sempre me diz que isso é uma bobagem, que tudo que existe, existe na sombra e
na luz. Eu acho que não. Na sombra tudo parece diferente, mais feio.
Fizemos de um balaio velho, duas telhas ocas e uma pedra as nossas
cadeiras, e nós quatro sentamos na frente do forno, meio amontoados, fechando a
saída. O Maurício tinha a lanterna na mão, mas quem podia abrir a porta do
primeiro andar era eu, que era o dono do Gambito. A gente não fazia muito barulho,
pensando que ele estivesse dormindo, então só se ouvia cochicho.
Tirei a primeira tábua com cuidado e espiei pra dentro: escuridão. Quando
tirei a segunda, meu irmão deu uma iluminada rápida lá dentro e me pareceu ter
visto algum movimento. Não era nada. Só as sombras que se moveram. Por fim,
tirei a terceira tábua escancarando a porta. Ficamos nós quatro espiando ao
mesmo tempo. Foi então que vi: lá no fundo, trêmulo, com os dois olhinhos muito
assustados, eu vi o Gambito e acho que entrei na cabecinha dele porque senti
exatamente o que ele estava sentindo. Vendo pelo lado dele, nós quatro éramos
quatro monstros enormes, com olhos do tamanho de laranjas e cabeças maiores do
que melancias. Uns monstros. E ele tremia de pavor, encolhido num canto sem ter
para onde fugir. Ele só esperava nosso ataque fulminante, então decerto abriria
as asinhas, o bico, se debateria um pouco, pois não tinha outra coisa a fazer.
Eu estava quase chorando quando pedi ao Maurício:
-
Desliga esta merda, vamos fechar isto aqui e deixar o Gambito em paz.
Eu vi o pavor nos olhinhos dele.
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