O texto abaixo é muito velho. Como se costuma dizer, eram meus primórdios. Estava fazendo meus exercícios narrativos e saiu com a ingenuidade do iniciante. Nunca tive coragem de publicá-lo e, se agora o mostro, é na presunção de que já não sou o mesmo. Pertence, digamos, a meu caderno de aprendiz.
À mesa, na hora do café,
Severina movia-se maquinalmente. Suas mãos tremiam, estava perturbada.
O telegrama
– Severina!
O café escorria pelas
bordas do pires.
– Está no mundo da lua?
– Levantei nervosa,
hoje.
– Mas por quê?
– Por quê! E a gente
sabe, por acaso, por que acorda com os nervos abalados?
– A toda ação
corresponde uma reação – afiançou professoralmente o filho mais velho.
– Tive um sonho ruim
esta noite.
Os filhos riram, e a mãe
irritou-se.
– Eu também não
acreditava. Fazia bem assim como vocês. Puro exibicionismo. No fundo, no fundo
mesmo, bem que vocês acreditam.
– Ora, mãe, esse negócio
de interpretação de sonho é coisa do Freud, muito mais complicado do que
parece.
Severina passou
margarina no pão e ficou segurando a faca em posição de batuta. Os olhos sem
foco olhavam para dentro. O primeiro sonho – era-lhe ainda grata – de que se
lembrava, era o sonho da cobra. Honório acabara consentido, saudoso dos cem mil
reais, na compra do bilhete inteiro. Na extração de sábado não dera outro
coisa. Cobra na cabeça. O número inteirinho, sem diferença nenhuma, era o
deles.
– Então como é que vocês
explicam tudo o que me aconteceu?
Acertar um sonho assim
como Severina acertou, só podia ter desencadeado nela esta paixão. Colecionava-os,
lia o que se escrevia a respeito, discutia, dava sua própria interpretação, e
acabou construindo todo um corpo de teorias. Sonhar com poço, negócios que
sairão mal; sonhar com muita água é morte na família; sonhar com cobra é
dinheiro que entra; sonhar com isto é na certa aquilo. Gostaria que os filhos e
o marido acreditassem também, mas eram supinamente cabeçudos, quando vinham com
essa história de ciência, explicação científica, coisas deste jaez. Gracejavam
de suas explicações, sem perceberem os riscos da vida e os avisos que entende
só quem acredita. Eram todos descrentes.
– A senhora já ouviu,
por acaso, falar de coincidência?
Severina recordava-se de
casos extraordinários.
– Aquela vez que eu
sonhei com uma criança chorando. Vocês se lembram? Chorava, chorava, que não
parava mais. Dois dias depois não chegou a notícia do nascimento do filho da
Gertrudes?
– E se a senhora não
tivesse sonhado, será que ele não tinha nascido?
– Eu nunca disse que ele
nasceu por causa do meu sonho. Eu só afirmo que o sonho é um aviso.
– Estamos na era do
telégrafo sem fio. Este aviso vem pelo ar, não é, mãe?
– E quando nós ganhamos
na loteria...
– Mas pensa bem, mãe,
aquela mesma noite tem um milhão de pessoas que sonharam com todo tipo de
animal. Só os que sonharam com a cobra é que ganharam na cabeça. Dá pra senhora
entender isso?
– Se tivesse sido só
este, ainda quem sabe eu ficava em dúvida, mas e os outros todos?
O marido olhava para o
relógio. Estava na hora de sair.
– Quando eu sonhei, duas
noites seguidas, com o meu pai. Cheguei lá e ele estava de cama.
Ninguém mais queria
discutir o assunto. Era malhar em ferro frio, apesar do chavão. A crença é
coisa muito poderosa, principalmente se formada no limbo do inexplicável e
baseada na estatística suficientemente flexível para aceitar qualquer
conformação.
– Esta noite eu sonhei
foi com uma borboleta muito grande. Era uma borboleta preta, meio cabeluda, que
voava em zigue-zague, só tremendo com as asas. Tinha os olhos da minha mãe. O
preto é luto. As asas tremendo é sorte.
Ao dizer, finalmente, o
que procurava afugentar do pensamento, o pão caiu-lhe das mãos. Ficou parada,
um nó de angústia apertando-lhe a garganta.
– Honório, por favor, dá
um pulinho até a casa da mamãe.
– Ah, filha, tenha dó,
eu não vou deixar o meu serviço só porque você sonhou com uma borboleta. O
muito que eu posso fazer é comprar um bilhete com o final treze.
Os filhos prorromperam
em gargalhada.
– Por favor, Honório.
Pode zombar, mas dá uma passadinha por lá. Um instantinho só. Depois me
telefona. Eu não aguento mais de aflição.
E não era mentira o que
afirmava. Estava pálida, pôs-se a tremer, arredou para longe a xícara de café
ainda transbordando.
– Caramba, você com
essas suas manias. Tá certo, eu passo por lá.
Na frente da casa o
carteiro conferiu o número e apertou a campainha. Teve de esperar durante muito
tempo até que fosse atendido.
Os filhos e o pai
entreolharam-se espantados, antecipadamente com raiva por mais esta
coincidência. Eis o que perturbava tudo. As coincidências. Severina perdeu os
sentidos. Só teve tempo de dizer “ai, Jesus”, e carregando bule, xícaras,
travessa de pão, toalha, potes, esparramou-se no piso. Tornaram-se todos
pálidos.
Agora sim, dois
desastres ao mesmo tempo. E o pior de tudo, convicções abaladas, teriam de
revisar alguns conceitos sobre esse negócio de psicologia. Enquanto Honório e a
filha atendiam a pobre mulher desmaiada, o filho mais velho teve a lembrança de
ir até a frente ver o que se passava. Enfim, alguém tinha chamado.
Voltou sorrindo com o
telegrama já aberto. Apesar de algumas semanas de atraso, não havia dúvida de
que era um telegrama de felicitações pelo aniversário de Severina.
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