sábado, 30 de março de 2013

PERDIDOS DO SÓTÃO

O texto abaixo é muito velho. Como se costuma dizer, eram meus primórdios. Estava fazendo meus exercícios narrativos e saiu com a ingenuidade do iniciante. Nunca tive coragem de publicá-lo e, se agora o mostro, é na presunção de que já não sou o mesmo. Pertence, digamos, a meu caderno de aprendiz.
O telegrama

         À mesa, na hora do café, Severina movia-se maquinalmente. Suas mãos tremiam, estava perturbada.


                        – Severina!

                        O café escorria pelas bordas do pires.

                        – Está no mundo da lua?

                        – Levantei nervosa, hoje.

                        – Mas por quê?

                        – Por quê! E a gente sabe, por acaso, por que acorda com os nervos abalados?

                        – A toda ação corresponde uma reação – afiançou professoralmente o filho mais velho.

                        – Tive um sonho ruim esta noite.

                        Os filhos riram, e a mãe irritou-se.

                        – Eu também não acreditava. Fazia bem assim como vocês. Puro exibicionismo. No fundo, no fundo mesmo, bem que vocês acreditam.

                        – Ora, mãe, esse negócio de interpretação de sonho é coisa do Freud, muito mais complicado do que parece.

                        Severina passou margarina no pão e ficou segurando a faca em posição de batuta. Os olhos sem foco olhavam para dentro. O primeiro sonho – era-lhe ainda grata – de que se lembrava, era o sonho da cobra. Honório acabara consentido, saudoso dos cem mil reais, na compra do bilhete inteiro. Na extração de sábado não dera outro coisa. Cobra na cabeça. O número inteirinho, sem diferença nenhuma, era o deles.

                        – Então como é que vocês explicam tudo o que me aconteceu?

                        Acertar um sonho assim como Severina acertou, só podia ter desencadeado nela esta paixão. Colecionava-os, lia o que se escrevia a respeito, discutia, dava sua própria interpretação, e acabou construindo todo um corpo de teorias. Sonhar com poço, negócios que sairão mal; sonhar com muita água é morte na família; sonhar com cobra é dinheiro que entra; sonhar com isto é na certa aquilo. Gostaria que os filhos e o marido acreditassem também, mas eram supinamente cabeçudos, quando vinham com essa história de ciência, explicação científica, coisas deste jaez. Gracejavam de suas explicações, sem perceberem os riscos da vida e os avisos que entende só quem acredita. Eram todos descrentes.

                        – A senhora já ouviu, por acaso, falar de coincidência?

                        Severina recordava-se de casos extraordinários.

                        – Aquela vez que eu sonhei com uma criança chorando. Vocês se lembram? Chorava, chorava, que não parava mais. Dois dias depois não chegou a notícia do nascimento do filho da Gertrudes?

                        – E se a senhora não tivesse sonhado, será que ele não tinha nascido?

                        – Eu nunca disse que ele nasceu por causa do meu sonho. Eu só afirmo que o sonho é um aviso.

                        – Estamos na era do telégrafo sem fio. Este aviso vem pelo ar, não é, mãe?

                        – E quando nós ganhamos na loteria...

                        – Mas pensa bem, mãe, aquela mesma noite tem um milhão de pessoas que sonharam com todo tipo de animal. Só os que sonharam com a cobra é que ganharam na cabeça. Dá pra senhora entender isso?

                        – Se tivesse sido só este, ainda quem sabe eu ficava em dúvida, mas e os outros todos?

                        O marido olhava para o relógio. Estava na hora de sair.

                        – Quando eu sonhei, duas noites seguidas, com o meu pai. Cheguei lá e ele estava de cama.

                        Ninguém mais queria discutir o assunto. Era malhar em ferro frio, apesar do chavão. A crença é coisa muito poderosa, principalmente se formada no limbo do inexplicável e baseada na estatística suficientemente flexível para aceitar qualquer conformação.

                        – Esta noite eu sonhei foi com uma borboleta muito grande. Era uma borboleta preta, meio cabeluda, que voava em zigue-zague, só tremendo com as asas. Tinha os olhos da minha mãe. O preto é luto. As asas tremendo é sorte.

                        Ao dizer, finalmente, o que procurava afugentar do pensamento, o pão caiu-lhe das mãos. Ficou parada, um nó de angústia apertando-lhe a garganta.

                        – Honório, por favor, dá um pulinho até a casa da mamãe.

                        – Ah, filha, tenha dó, eu não vou deixar o meu serviço só porque você sonhou com uma borboleta. O muito que eu posso fazer é comprar um bilhete com o final treze.

                        Os filhos prorromperam em gargalhada.

                        – Por favor, Honório. Pode zombar, mas dá uma passadinha por lá. Um instantinho só. Depois me telefona. Eu não aguento mais de aflição.

                        E não era mentira o que afirmava. Estava pálida, pôs-se a tremer, arredou para longe a xícara de café ainda transbordando.

                        – Caramba, você com essas suas manias. Tá certo, eu passo por lá.

                        Na frente da casa o carteiro conferiu o número e apertou a campainha. Teve de esperar durante muito tempo até que fosse atendido.

                        Os filhos e o pai entreolharam-se espantados, antecipadamente com raiva por mais esta coincidência. Eis o que perturbava tudo. As coincidências. Severina perdeu os sentidos. Só teve tempo de dizer “ai, Jesus”, e carregando bule, xícaras, travessa de pão, toalha, potes, esparramou-se no piso. Tornaram-se todos pálidos.

                        Agora sim, dois desastres ao mesmo tempo. E o pior de tudo, convicções abaladas, teriam de revisar alguns conceitos sobre esse negócio de psicologia. Enquanto Honório e a filha atendiam a pobre mulher desmaiada, o filho mais velho teve a lembrança de ir até a frente ver o que se passava. Enfim, alguém tinha chamado.

                        Voltou sorrindo com o telegrama já aberto. Apesar de algumas semanas de atraso, não havia dúvida de que era um telegrama de felicitações pelo aniversário de Severina.

                                  





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