sexta-feira, 22 de março de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto abaixo pode ser encontrado no livro À sombra do cipreste, cuja 6ª edição saiu pela Editora Global em 2012.

Guirlandas e Grinaldas: a brisa

Tinham acabado de finalmente sair, bando barulhento, os últimos moradores da pensão. Sozinho à mesa, olhar morto, cansado, Rogério remexeu-se na cadeira desconfortável, incomodado subitamente com o silêncio que, ainda há pouco, enquanto espocavam alegremente gargalhadas e garrafas de champanha em sua volta, tinha desejado com sofrida e feroz irritação. Saíram em grupos animados, muito cristãos,  para a missa do galo da catedral, ali perto, pouco além das janelas altas da frente. De mãos dadas, alguns, outros abraçados. Felizes: para bem longe rixas e antigas desavenças, tomados, de repente, pela crença de que o milagre estava prestes a consumar-se. Insistiram muito, os coitados, para que ele fosse também, demonstração de que os perdoava. Mais que todos, insistiu Henrique, o pai das duas menininhas loiras. Porque um dia, na porta de seu quarto: sua bichana balofa. Razão qualquer, a da ofensa, provavelmente coisa à toa, de que nem se lembrava mais. Claro que os perdoava, pois enfim, era aquele o dia. Depois da meia-noite o mundo seria outro: fazia algum tempo que vinha notando os preparativos. Vestígio nenhum, portanto,  de vindita em sua decisão de ficar: precisão inadiável, apenas, de observar sozinho o escoar do tempo, de sozinho respirar a aragem daquela bondade prometida e tão ansiosamente esperada nos últimos dias. À meia-noite ela desceria sobre a cidade.


Nunca assim tão iluminada, a sala de jantar de dona Hermínia, nem tão festiva, com as grinaldas de rosas pendentes do teto, e os ramalhetes de flores guarnecendo os cantos. Ao chegar do banco, logo depois do meio-dia, Rogério encontrou a mulher do sargento e uma das empregadas da casa  esfolando-se nos aprestos da decoração. As lanternas chinesas, parece que alguém as tinha trazido do Paraguai, um toque de delicadeza imitando arandelas nas paredes. A guirlanda com ramos e frutos naturais, presente de Rogério a dona Hermínia. As duas velhinhas do quarto da frente, as irmãs Laura e Lóris, as únicas de quem nunca tivera a menor queixa, entraram com o pinheirinho, os cordões de prata, as lâmpadas em forma de velas e as bolas de vidro. A festa familiar e íntima de um povo sem raiz, sua despedida e preparação.

A cidade,  desde cedo, já dava sinais evidentes de que qualquer coisa se aproximava. Nem todos sabiam, mas todos esperavam. As pessoas se cruzavam sorrindo nas calçadas, corteses, cumprimentando-se, alguns, e desejando-se felicidade. Gente a quem Rogério nunca vira, nada mais que incógnitos transeuntes: a cidade, agora, uma imensa família. Era de seus cumprimentos e sorrisos que Rogério tirava aquela certeza de que não passaria da meia-noite. Umas ruas por onde passava todos os dias, apenas no cumprimento de sua rotina, seu roteiro, o itinerário obrigatório, sem nunca ter percebido nelas nada de especial, já estavam diferentes como promessas inesperadas - grinaldas e guirlandas, fitas coloridas.

A vendedora da loja em que entrou, no caminho da pensão, abordou-o com um sorriso fresco e úmido à guisa de crachá. Um sorriso encarnado. Ele até que gostaria de ficar por ali, despercebido, escolhendo sem pressa, mas ela não o largou, solícita. Quando é pra mim, você entende?... Difícil escolher qualquer coisa assim pressionado: sexo, idade, ah, viúva!, condição social, tendência estética, olhe, tenho uma sugestão que o senhor vai ver, impossível que não agrade, etc. O interesse da moça pareceu-lhe tão verdadeiro que até seu sorriso deixou de ser aquela obrigação da funcionária e conseguiu esconder-lhe o cansaço que o excessivo movimento daquela manhã vinha causando. Talvez estivesse enganado, quem sabe, mas pareceu-lhe que ela o espiava com certo ar de  cumplicidade: ela também esperava por aquele momento. Então entregou-se a seus cuidados. Se fosse, entretanto, uma simpatia profissional, tão-somente, que diabo, quanta falta de uma atenção, a vida toda, profissional que fosse, não seria menos simpatia por isso. Já na pensão, depois da entrega dos presentes de amigo secreto, copeiras e cozinheiras saíram também em companhia dos pensionistas para a missa, uma cena que o comoveu: a comunhão. Pena que tivessem deixado sobre as mesas uma paisagem tão repugnante, uma paisagem que lhe fazia mal. As mesas todas atravancadas de restos, pratos e talheres sujos, bagaços e cascas de frutas, garrafas vazias e pedaços de aves lambuzados de gordura. Ah! aquilo o deixava bastante nauseado. Perdera o controle, certo, comendo mais do que devia. E tinha exagerado um pouco, também, no champanha. Mas seria a última vez, jurou convicto, porque seu coração fora assaltado pela esperança de que no dia seguinte o mundo já seria outro, bem diferente.

Em casa, na escola, na igreja, em toda parte havia sempre alguém ensinando que um dia a bondade desceria de uma nuvem e se instalaria definitivamente sobre a Terra, e que ela, então, emanando uma fragrância divina, seria outra, bem diferente. Poucos eram aqueles que pressentiam o que aconteceria. Seus pais não perdiam oportunidade de ameaçar: assim você nunca vai sentir coisa nenhuma. Sua mãe, principalmente. Quando lhe perguntavam, instantemente, ele dizia que sim, que sentia, mas depois ardia em dúvidas, sem saber se era aquilo mesmo de que falavam. Algumas pessoas respeitáveis diziam que desceria de uma nuvem, durante a missa do galo, outras, tão respeitáveis quanto as primeiras, discordavam daquelas, afirmando que sairia do povo, do meio do povo, em lugar e hora que ninguém  poderia esperar. O Teodoro foi a primeira pessoa a dizer-lhe: isso tudo é uma puta besteira. Estavam sentados atrás do muro da escola e Rogério, assustado, dizia que não, que do alto alguém tudo podia ver. Ele respondeu, então, que tudo aquilo era uma puta besteira. Ouvindo tamanha blasfêmia, Rogério sentiu uma morte amarga e antiga entrando por sua boca aberta. Medonha. Passou um mês escondendo-se em cantos escuros, fugindo do olhar de adultos conhecidos, seus olhos assombrados e febris: parecia que a marca do Teodoro estava tatuada em seu rosto. Então, um dia, cansado de fugir, voltou a sentar-se atrás do muro. Quando menos você estiver esperando, disse-lhe uma vez o padre, ele desce. E Rogério gelou num desmaio de medo.

No início de dezembro, começou a desconfiar do quanto estivera errado ao duvidar. Nos enfeites das ruas, nas vitrinas das lojas, no sorriso das pessoas, em tudo as promessas  pelas quais ansiosamente viera esperando por quase toda sua vida. 

Nem as janelas inteiramente abertas aliviavam-no do calor. Sentia-se mal, pesado, sem o alívio que esperava do silêncio. E o suor, umedecendo-lhe o cabelo na nuca, encharcando-lhe cada centímetro da roupa e do corpo, era um desconforto difícil de suportar. Sentia-se desmanchar como rímel em rosto de prostituta. Tivesse mais tempo, tomaria uma ducha fria. Mas faltavam menos de dez minutos para que fosse o dia seguinte, e ele precisava trancar-se no quarto, esperando a passagem. Um sal de fruta, que fosse, mas nem isso, e o mundo era um veleiro com o mastro a oscilar. Os quartos todos trancados, no escuro, sem fazer barulho nenhum, concentrados. Hóspedes e hospedeiros, todos na catedral. Sozinho, naquele casarão, como jamais estivera, mas no coração a brisa macia da esperança.

Abriu a porta e, trêmulo, sentindo uma ansiedade sem explicação, entrou no quarto. O ambiente estava ainda mais abafado do que na sala de jantar e seu desconforto só aumentou. Mas já se podiam ouvir os foguetes, que esparsamente espocavam nos bairros mais afastados e, de terno, como estava, jogou-se na cama. Logo depois o carrilhão da catedral anunciou a meia-noite e ele pôde ouvir, como se ali, dentro do quarto, o foguetório do centro da cidade e os fervorosos hinos de louvor entoados pelos fiéis. Os lençóis estavam encharcados: em êxtase, não sentiu mais o corpo.

Escondidos pelo mato e pelo muro da escola, o Teodoro havia dito:

- Isso tudo é uma puta besteira.

Mas o que é então verdade?

Não chegou a sentir a brisa prometida: adormeceu antes.

Quando acordou, manhã a meio, ouvindo gargalhadas no quarto dos estudantes, do outro lado da parede, pulou furioso da cama, por causa da roupa amassada, do gosto amargo na boca, e por causa das gargalhadas. Não gostava do olhar escarninho com que eles o encaravam. Tirou o paletó e a camisa, pegou uma toalha de banho e saiu. Só então se lembrou das circunstâncias em que tinha adormecido. O banheiro ficava no fim do corredor e antes de chegar à metade do caminho quase foi atropelado pelas filhas  do Henrique, as duas na inauguração de seus patins barulhentos. E  pareceu-lhe que arremeteram contra ele de propósito, para assustá-lo, pois de longe ainda lhe faziam caretas, mostrando a língua e gesticulando obscenidades com as duas mãos.

   A pensão toda certamente já havia desfilado pelo banheiro, o piso, àquela hora, alagado e sujo. Pior que aquilo, entretanto, foi perceber que a família do sargento continuava urinando fora do vaso, como era público e insolúvel. Não fosse a premência de um banho, ali mesmo da porta ele teria voltado. O cheiro de amoníaco, o mesmo de sempre, invadiu suas narinas, sufocante.

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