O conto abaixo pode ser encontrado no livro À sombra do cipreste, cuja 6ª edição saiu pela Editora Global em 2012.
Guirlandas e Grinaldas: a brisa
Tinham acabado de finalmente sair, bando barulhento, os últimos moradores da pensão. Sozinho à mesa, olhar morto, cansado, Rogério remexeu-se na cadeira desconfortável, incomodado subitamente com o silêncio que, ainda há pouco, enquanto espocavam alegremente gargalhadas e garrafas de champanha em sua volta, tinha desejado com sofrida e feroz irritação. Saíram em grupos animados, muito cristãos, para a missa do galo da catedral, ali perto, pouco além das janelas altas da frente. De mãos dadas, alguns, outros abraçados. Felizes: para bem longe rixas e antigas desavenças, tomados, de repente, pela crença de que o milagre estava prestes a consumar-se. Insistiram muito, os coitados, para que ele fosse também, demonstração de que os perdoava. Mais que todos, insistiu Henrique, o pai das duas menininhas loiras. Porque um dia, na porta de seu quarto: sua bichana balofa. Razão qualquer, a da ofensa, provavelmente coisa à toa, de que nem se lembrava mais. Claro que os perdoava, pois enfim, era aquele o dia. Depois da meia-noite o mundo seria outro: fazia algum tempo que vinha notando os preparativos. Vestígio nenhum, portanto, de vindita em sua decisão de ficar: precisão inadiável, apenas, de observar sozinho o escoar do tempo, de sozinho respirar a aragem daquela bondade prometida e tão ansiosamente esperada nos últimos dias. À meia-noite ela desceria sobre a cidade.
Tinham acabado de finalmente sair, bando barulhento, os últimos moradores da pensão. Sozinho à mesa, olhar morto, cansado, Rogério remexeu-se na cadeira desconfortável, incomodado subitamente com o silêncio que, ainda há pouco, enquanto espocavam alegremente gargalhadas e garrafas de champanha em sua volta, tinha desejado com sofrida e feroz irritação. Saíram em grupos animados, muito cristãos, para a missa do galo da catedral, ali perto, pouco além das janelas altas da frente. De mãos dadas, alguns, outros abraçados. Felizes: para bem longe rixas e antigas desavenças, tomados, de repente, pela crença de que o milagre estava prestes a consumar-se. Insistiram muito, os coitados, para que ele fosse também, demonstração de que os perdoava. Mais que todos, insistiu Henrique, o pai das duas menininhas loiras. Porque um dia, na porta de seu quarto: sua bichana balofa. Razão qualquer, a da ofensa, provavelmente coisa à toa, de que nem se lembrava mais. Claro que os perdoava, pois enfim, era aquele o dia. Depois da meia-noite o mundo seria outro: fazia algum tempo que vinha notando os preparativos. Vestígio nenhum, portanto, de vindita em sua decisão de ficar: precisão inadiável, apenas, de observar sozinho o escoar do tempo, de sozinho respirar a aragem daquela bondade prometida e tão ansiosamente esperada nos últimos dias. À meia-noite ela desceria sobre a cidade.
Nunca assim tão
iluminada, a sala de jantar de dona Hermínia, nem tão festiva, com as grinaldas
de rosas pendentes do teto, e os ramalhetes de flores guarnecendo os cantos. Ao
chegar do banco, logo depois do meio-dia, Rogério encontrou a mulher do
sargento e uma das empregadas da casa
esfolando-se nos aprestos da decoração. As lanternas chinesas, parece
que alguém as tinha trazido do Paraguai, um toque de delicadeza imitando
arandelas nas paredes. A guirlanda com ramos e frutos naturais, presente de Rogério
a dona Hermínia. As duas velhinhas do quarto da frente, as irmãs Laura e Lóris,
as únicas de quem nunca tivera a menor queixa, entraram com o pinheirinho, os
cordões de prata, as lâmpadas em forma de velas e as bolas de vidro. A festa
familiar e íntima de um povo sem raiz, sua despedida e preparação.
A cidade, desde cedo, já dava sinais evidentes de que
qualquer coisa se aproximava. Nem todos sabiam, mas todos esperavam. As pessoas
se cruzavam sorrindo nas calçadas, corteses, cumprimentando-se, alguns, e
desejando-se felicidade. Gente a quem Rogério nunca vira, nada mais que
incógnitos transeuntes: a cidade, agora, uma imensa família. Era de seus
cumprimentos e sorrisos que Rogério tirava aquela certeza de que não passaria
da meia-noite. Umas ruas por onde passava todos os dias, apenas no cumprimento
de sua rotina, seu roteiro, o itinerário obrigatório, sem nunca ter percebido
nelas nada de especial, já estavam diferentes como promessas inesperadas -
grinaldas e guirlandas, fitas coloridas.
A vendedora da loja
em que entrou, no caminho da pensão, abordou-o com um sorriso fresco e úmido à
guisa de crachá. Um sorriso encarnado. Ele até que gostaria de ficar por ali,
despercebido, escolhendo sem pressa, mas ela não o largou, solícita. Quando é
pra mim, você entende?... Difícil escolher qualquer coisa assim pressionado:
sexo, idade, ah, viúva!, condição social, tendência estética, olhe, tenho uma
sugestão que o senhor vai ver, impossível que não agrade, etc. O interesse da
moça pareceu-lhe tão verdadeiro que até seu sorriso deixou de ser aquela
obrigação da funcionária e conseguiu esconder-lhe o cansaço que o excessivo
movimento daquela manhã vinha causando. Talvez estivesse enganado, quem sabe,
mas pareceu-lhe que ela o espiava com certo ar de cumplicidade: ela também esperava por aquele
momento. Então entregou-se a seus cuidados. Se fosse, entretanto, uma simpatia
profissional, tão-somente, que diabo, quanta falta de uma atenção, a vida toda,
profissional que fosse, não seria menos simpatia por isso. Já na pensão, depois
da entrega dos presentes de amigo secreto, copeiras e cozinheiras saíram também
em companhia dos pensionistas para a missa, uma cena que o comoveu: a comunhão.
Pena que tivessem deixado sobre as mesas uma paisagem tão repugnante, uma
paisagem que lhe fazia mal. As mesas todas atravancadas de restos, pratos e
talheres sujos, bagaços e cascas de frutas, garrafas vazias e pedaços de aves
lambuzados de gordura. Ah! aquilo o deixava bastante nauseado. Perdera o
controle, certo, comendo mais do que devia. E tinha exagerado um pouco, também,
no champanha. Mas seria a última vez, jurou convicto, porque seu coração fora assaltado
pela esperança de que no dia seguinte o mundo já seria outro, bem diferente.
Em casa, na escola,
na igreja, em toda parte havia sempre alguém ensinando que um dia a bondade
desceria de uma nuvem e se instalaria definitivamente sobre a Terra, e que ela,
então, emanando uma fragrância divina, seria outra, bem diferente. Poucos eram
aqueles que pressentiam o que aconteceria. Seus pais não perdiam oportunidade
de ameaçar: assim você nunca vai sentir coisa nenhuma. Sua mãe, principalmente.
Quando lhe perguntavam, instantemente, ele dizia que sim, que sentia, mas
depois ardia em dúvidas, sem saber se era aquilo mesmo de que falavam. Algumas
pessoas respeitáveis diziam que desceria de uma nuvem, durante a missa do galo,
outras, tão respeitáveis quanto as primeiras, discordavam daquelas, afirmando
que sairia do povo, do meio do povo, em lugar e hora que ninguém poderia esperar. O Teodoro foi a primeira
pessoa a dizer-lhe: isso tudo é uma puta besteira. Estavam sentados atrás do
muro da escola e Rogério, assustado, dizia que não, que do alto alguém tudo
podia ver. Ele respondeu, então, que tudo aquilo era uma puta besteira. Ouvindo
tamanha blasfêmia, Rogério sentiu uma morte amarga e antiga entrando por sua
boca aberta. Medonha. Passou um mês escondendo-se em cantos escuros, fugindo do
olhar de adultos conhecidos, seus olhos assombrados e febris: parecia que a
marca do Teodoro estava tatuada em seu rosto. Então, um dia, cansado de fugir,
voltou a sentar-se atrás do muro. Quando menos você estiver esperando, disse-lhe
uma vez o padre, ele desce. E Rogério gelou num desmaio de medo.
No início de
dezembro, começou a desconfiar do quanto estivera errado ao duvidar. Nos
enfeites das ruas, nas vitrinas das lojas, no sorriso das pessoas, em tudo as
promessas pelas quais ansiosamente viera
esperando por quase toda sua vida.
Nem as janelas
inteiramente abertas aliviavam-no do calor. Sentia-se mal, pesado, sem o alívio
que esperava do silêncio. E o suor, umedecendo-lhe o cabelo na nuca, encharcando-lhe
cada centímetro da roupa e do corpo, era um desconforto difícil de suportar.
Sentia-se desmanchar como rímel em rosto de prostituta. Tivesse mais tempo,
tomaria uma ducha fria. Mas faltavam menos de dez minutos para que fosse o dia
seguinte, e ele precisava trancar-se no quarto, esperando a passagem. Um sal de
fruta, que fosse, mas nem isso, e o mundo era um veleiro com o mastro a
oscilar. Os quartos todos trancados, no escuro, sem fazer barulho nenhum,
concentrados. Hóspedes e hospedeiros, todos na catedral. Sozinho, naquele
casarão, como jamais estivera, mas no coração a brisa macia da esperança.
Abriu a porta e,
trêmulo, sentindo uma ansiedade sem explicação, entrou no quarto. O ambiente
estava ainda mais abafado do que na sala de jantar e seu desconforto só
aumentou. Mas já se podiam ouvir os foguetes, que esparsamente espocavam nos
bairros mais afastados e, de terno, como estava, jogou-se na cama. Logo depois
o carrilhão da catedral anunciou a meia-noite e ele pôde ouvir, como se ali,
dentro do quarto, o foguetório do centro da cidade e os fervorosos hinos de
louvor entoados pelos fiéis. Os lençóis estavam encharcados: em êxtase, não
sentiu mais o corpo.
Escondidos pelo
mato e pelo muro da escola, o Teodoro havia dito:
- Isso tudo é uma
puta besteira.
Mas o que é então
verdade?
Não chegou a sentir
a brisa prometida: adormeceu antes.
Quando acordou,
manhã a meio, ouvindo gargalhadas no quarto dos estudantes, do outro lado da
parede, pulou furioso da cama, por causa da roupa amassada, do gosto amargo na
boca, e por causa das gargalhadas. Não gostava do olhar escarninho com que eles
o encaravam. Tirou o paletó e a camisa, pegou uma toalha de banho e saiu. Só
então se lembrou das circunstâncias em que tinha adormecido. O banheiro ficava
no fim do corredor e antes de chegar à metade do caminho quase foi atropelado
pelas filhas do Henrique, as duas na
inauguração de seus patins barulhentos. E
pareceu-lhe que arremeteram contra ele de propósito, para assustá-lo,
pois de longe ainda lhe faziam caretas, mostrando a língua e gesticulando
obscenidades com as duas mãos.
A
pensão toda certamente já havia desfilado pelo banheiro, o piso, àquela hora,
alagado e sujo. Pior que aquilo, entretanto, foi perceber que a família do
sargento continuava urinando fora do vaso, como era público e insolúvel. Não
fosse a premência de um banho, ali mesmo da porta ele teria voltado. O cheiro
de amoníaco, o mesmo de sempre, invadiu suas narinas, sufocante.
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