O capítulo que segue é do livro Antes da meia-noite, publicado pela Editora Ática em 2007.
Bolinho de chuva
Acordo pensando que é minha mãe. Vó Joana tem o mesmo jeito de me
acordar: senta na beirada da cama, diz meu nome baixinho e me passa a mão pela
testa. O quarto está mergulhado em penumbra e demoro algum tempo para descobrir
que não é de manhã nem é minha mãe que está sentada na cama.
– Venha, Aline, a Márcia fez uns bolinhos daqueles de que você gosta. E
agora vou tocar alguma coisa pra você.
Ela abre a cortina e sinto o frio que desce do céu pelos riscos da chuva.
– O bispo já foi encontrado – ela me informa contente. – Ele estava
caminhando sozinho numa estrada deserta. E a Pajero apareceu no quintal de uma
casa abandonada a mais de duzentos quilômetros daqui. Vazia.
– E a minha mãe?
– Ela telefonou enquanto você dormia e disse que daqui a pouco vem pra
cá.
Vó Joana diz qualquer coisa para Márcia, e vamos abraçadas para a sala.
Atrás de nós chegam os bolinhos de chuva ainda fumegando. Ela ergue a tampa do
teclado, alisa as teclas com o feltro de proteção, ajeita a banqueta e fecha os
olhos, a cabeça levemente erguida. Quantas vezes assisti a esta cena? Seu
ritual é o mesmo desde que comecei a andar. Tudo isso é feito em silêncio e
concentração, tanto da pianista quanto daqueles que se preparam para ouvi-la.
Com as três primeiras notas, identifico a peça Clair de Lune, de Debussy.
A delicadeza da melodia e suas notas soltas e molhadas como pingos de chuva me
fazem sentir frio, mas não um frio físico, frio nos braços, mas um frio que é
uma pureza, o bem-estar de uma viajante despreocupada a caminho de muito longe.
Não posso esquecer que hoje de manhã prometi duas coisas se minha mãe se
saísse bem daquela enrascada. Preciso regular minhas entradas em chat e estudar
muito mais para passar de ano. Sem recuperação. O Fabrício disse que não se
perde um ano, porque não se pode apagar o que se viveu durante esse tempo. Mas
eu tenho de me livrar desta sensação horrorosa de ser menos competente do que
os outros. Vó Joana termina a Clair de Lune, e eu aplaudo com muita vibração.
Ela se levanta e se inclina reverente para meu lado, em agradecimento.
A travessa ainda está cheia dos bolinhos da Márcia. Aproveitamos o
intervalo para nos servir. Enfio dois na boca, com pressa, porque o ritual da
pianista recomeça. Ela olha para mim, conferindo se estou prestando atenção.
Ainda estou engolindo os bolinhos, mas muito ligada no piano. Ela começa e eu
pulo da cadeira.
– Ah, não, vozinha, esta é a minha valsa.
– Pois então comece a dançar.
Minha avó está começando a Valsa em Dó sustenido menor, de Les Sylphides,
de Chopin. A apresentação de nossa escola foi o maior sucesso. Eu não resisto e
invado a sala reclamando.
– Eu não trouxe as sapatilhas.
Ela toca sem tirar os olhos de mim, de meus movimentos. E não pára de
sorrir, como se ambas nos tivéssemos evadido para um mundo etéreo, onde a vida
é prazer e alegria, nada mais.
Depois da última nota ela vem me abraçar:
– Você é uma verdadeira sílfide, minha querida. Você está divina,
criaturinha.
A campainha toca e eu corro a abrir a porta. É ela, sim, e eu me arrojo
em seus braços. Faço beicinho, ameaço chorar, mas já não há mais lágrimas no
reservatório. Beijo-a com fúria de quem viu a morte passar por perto. Minha mãe
me retribui, enchendo minha cara de beijos também. Sabe-se lá o que passou por
sua cabeça enquanto ela tinha aquele cano de revólver cutucando sua nuca.
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