domingo, 7 de abril de 2013

FRAGMENTO DE UM ROMANCE JUVENIL

O capítulo que segue é do livro Antes da meia-noite, publicado pela Editora Ática em 2007.

Bolinho de chuva

Acordo pensando que é minha mãe. Vó Joana tem o mesmo jeito de me acordar: senta na beirada da cama, diz meu nome baixinho e me passa a mão pela testa. O quarto está mergulhado em penumbra e demoro algum tempo para descobrir que não é de manhã nem é minha mãe que está sentada na cama.


– Venha, Aline, a Márcia fez uns bolinhos daqueles de que você gosta. E agora vou tocar alguma coisa pra você.

Ela abre a cortina e sinto o frio que desce do céu pelos riscos da chuva.

– O bispo já foi encontrado – ela me informa contente. – Ele estava caminhando sozinho numa estrada deserta. E a Pajero apareceu no quintal de uma casa abandonada a mais de duzentos quilômetros daqui. Vazia.

– E a minha mãe?

– Ela telefonou enquanto você dormia e disse que daqui a pouco vem pra cá.

Vó Joana diz qualquer coisa para Márcia, e vamos abraçadas para a sala. Atrás de nós chegam os bolinhos de chuva ainda fumegando. Ela ergue a tampa do teclado, alisa as teclas com o feltro de proteção, ajeita a banqueta e fecha os olhos, a cabeça levemente erguida. Quantas vezes assisti a esta cena? Seu ritual é o mesmo desde que comecei a andar. Tudo isso é feito em silêncio e concentração, tanto da pianista quanto daqueles que se preparam para ouvi-la.

Com as três primeiras notas, identifico a peça Clair de Lune, de Debussy. A delicadeza da melodia e suas notas soltas e molhadas como pingos de chuva me fazem sentir frio, mas não um frio físico, frio nos braços, mas um frio que é uma pureza, o bem-estar de uma viajante despreocupada a caminho de muito longe.

Não posso esquecer que hoje de manhã prometi duas coisas se minha mãe se saísse bem daquela enrascada. Preciso regular minhas entradas em chat e estudar muito mais para passar de ano. Sem recuperação. O Fabrício disse que não se perde um ano, porque não se pode apagar o que se viveu durante esse tempo. Mas eu tenho de me livrar desta sensação horrorosa de ser menos competente do que os outros. Vó Joana termina a Clair de Lune, e eu aplaudo com muita vibração. Ela se levanta e se inclina reverente para meu lado, em agradecimento.

A travessa ainda está cheia dos bolinhos da Márcia. Aproveitamos o intervalo para nos servir. Enfio dois na boca, com pressa, porque o ritual da pianista recomeça. Ela olha para mim, conferindo se estou prestando atenção. Ainda estou engolindo os bolinhos, mas muito ligada no piano. Ela começa e eu pulo da cadeira.

– Ah, não, vozinha, esta é a minha valsa.

– Pois então comece a dançar.

Minha avó está começando a Valsa em Dó sustenido menor, de Les Sylphides, de Chopin. A apresentação de nossa escola foi o maior sucesso. Eu não resisto e invado a sala reclamando.

– Eu não trouxe as sapatilhas.

Ela toca sem tirar os olhos de mim, de meus movimentos. E não pára de sorrir, como se ambas nos tivéssemos evadido para um mundo etéreo, onde a vida é prazer e alegria, nada mais.

Depois da última nota ela vem me abraçar:

– Você é uma verdadeira sílfide, minha querida. Você está divina, criaturinha.

A campainha toca e eu corro a abrir a porta. É ela, sim, e eu me arrojo em seus braços. Faço beicinho, ameaço chorar, mas já não há mais lágrimas no reservatório. Beijo-a com fúria de quem viu a morte passar por perto. Minha mãe me retribui, enchendo minha cara de beijos também. Sabe-se lá o que passou por sua cabeça enquanto ela tinha aquele cano de revólver cutucando sua nuca.

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