domingo, 14 de abril de 2013

FRAGMENTO DE UMA HISTÓRIA INFANTIL

O fragmento que segue foi extraído do livro Gambito publicado pela Edições SM, em 2005.

Abri os olhos e não vi nada. Por algum tempo fiquei assim: os olhos bem abertos, no escuro, e os ouvidos muito atentos, no silêncio. Só eu estava acordado no mundo, por isso não queria me mexer. Eu não estava muito certo a respeito do que me acordara, mas tinha a impressão de que tinha ouvido alguma coisa diferente. Afastei um pouco o lençol com que me cobria pra ficar mais exposto a qualquer coisa que acontecesse. Eu queria saber.



De repente ouvi. Era um pio alto e agudo, afinando mais no fim, como uma queixa. Aquilo era a voz do Gambito. Tive certeza disso no momento em que ouvi meu filhote piar. Passou algum tempo em silêncio e o ar se encheu outra vez de seu piado que me pareceu o modo como ele sabia chorar. Aquele pio agudo e prolongado era um espinho que vinha por dentro da noite e me rasgava alguma coisa no peito. Era uma dor, o que eu sentia cada vez que ele piava. Uma dor como uma tristeza. Fiiiuuú! Uma melodia que começou a me oprimir, a me deixar tão triste como ele. Pronto, não tinha mais jeito de dormir. Piou duas, três, cinco vezes, espaçadamente, antes que eu criasse coragem e fosse até a cama do Maurício, que eu mal desconfiava onde era.

Sacudi meu irmão.

- Maurício, você está ouvindo?

Ele não estava, porque acordou resmungando “o que é que foi, o que é que foi”. E já ia se virar para o lado da parede quando o Gambito piou ainda mais alto do que antes. O Maurício parou, atento, sem me dizer nada.

- O que você acha que é isso, Maurício?

- É o teu passarinho - ele respondeu.

- O Gambito?

- É.

- E por que você acha que ele está piando assim?

Meu irmão empurrou o lençol e sentou na cama.

- Vai dormir, pirralho.

- Eu não posso. Eu preciso saber por que é que ele está piando tão triste.

- Ora, Carlinhos, eu acho que ele está sentindo a falta da mãe dele. Ele não passa de um filhote, não é mesmo?

Eu já imaginava isso, mas queria ouvir a confirmação. Voltei pra minha cama e fiquei sentado na beirada, esperando. Se ele parasse com aquele seu choro eu ia dormir.

Ele não parou, e eu já estava quase chorando também.

Fui de novo até a cama do Maurício.

- Maurício!

E ele bem sem vontade de muito papo.

- Fala, pirralho.

- Será que é muito de noite?

Meu irmão acendeu a luz e olhamos ao mesmo tempo para o despertador que ficava no seu criado-mudo.

- Logo, logo clareia, Carlinhos.

Um tempão de pé, eu esperava que o Gambito parasse de piar.

Ele não parou.

- Maurício, agora.

- Agora o quê, Carlinhos?

- Você me ajuda a levar o Gambito até a beira do rio? Eu não consigo dormir com ele piando deste jeito. É muito triste e parece dentro da minha cabeça.

Ah, mas eu gosto é muito do meu irmão. Em cinco minutos nós dois estávamos descendo pelo meio das vacas no campo do meu avô. O Barão e o Tigre ameaçaram ir conosco, mas eu pedi que o Maurício enxotasse os cachorros, com medo de que eles machucassem o filhote de saracura. Não vi as vacas, não tive medo delas. Eu ia quase correndo ao lado do Maurício, que também estava com pressa.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças