O fragmento que segue foi extraído do livro Gambito publicado pela Edições SM, em 2005.
Abri os olhos e não vi nada. Por algum tempo fiquei assim: os olhos bem
abertos, no escuro, e os ouvidos muito atentos, no silêncio. Só eu estava
acordado no mundo, por isso não queria me mexer. Eu não estava muito certo a
respeito do que me acordara, mas tinha a impressão de que tinha ouvido alguma
coisa diferente. Afastei um pouco o lençol com que me cobria pra ficar mais
exposto a qualquer coisa que acontecesse. Eu queria saber.
De repente ouvi. Era um pio alto e agudo, afinando mais no fim, como uma
queixa. Aquilo era a voz do Gambito. Tive certeza disso no momento em que ouvi
meu filhote piar. Passou algum tempo em silêncio e o ar se encheu outra vez de
seu piado que me pareceu o modo como ele sabia chorar. Aquele pio agudo e
prolongado era um espinho que vinha por dentro da noite e me rasgava alguma
coisa no peito. Era uma dor, o que eu sentia cada vez que ele piava. Uma dor
como uma tristeza. Fiiiuuú! Uma melodia que começou a me oprimir, a me deixar
tão triste como ele. Pronto, não tinha mais jeito de dormir. Piou duas, três,
cinco vezes, espaçadamente, antes que eu criasse coragem e fosse até a cama do
Maurício, que eu mal desconfiava onde era.
Sacudi meu irmão.
-
Maurício, você está ouvindo?
Ele não estava, porque acordou resmungando “o que é que foi, o que é que
foi”. E já ia se virar para o lado da parede quando o Gambito piou ainda mais
alto do que antes. O Maurício parou, atento, sem me dizer nada.
-
O que você acha que é isso, Maurício?
-
É o teu passarinho -
ele respondeu.
-
O Gambito?
-
É.
-
E por que você acha que ele está piando assim?
Meu irmão empurrou o lençol e sentou na cama.
-
Vai dormir, pirralho.
-
Eu não posso. Eu preciso saber por que é que ele está piando tão triste.
-
Ora, Carlinhos, eu acho que ele está sentindo a falta da mãe dele. Ele não
passa de um filhote, não é mesmo?
Eu já imaginava isso, mas queria ouvir a confirmação. Voltei pra minha
cama e fiquei sentado na beirada, esperando. Se ele parasse com aquele seu
choro eu ia dormir.
Ele não parou, e eu já estava quase chorando também.
Fui de novo até a cama do Maurício.
-
Maurício!
E ele bem sem vontade de muito papo.
-
Fala, pirralho.
-
Será que é muito de noite?
Meu irmão acendeu a luz e olhamos ao mesmo tempo para o despertador que
ficava no seu criado-mudo.
-
Logo, logo clareia, Carlinhos.
Um tempão de pé, eu esperava que o Gambito parasse de piar.
Ele não parou.
-
Maurício, agora.
-
Agora o quê, Carlinhos?
-
Você me ajuda a levar o Gambito até a beira do rio? Eu não consigo dormir com
ele piando deste jeito. É muito triste e parece dentro da minha cabeça.
Ah, mas eu gosto é muito do meu irmão. Em cinco minutos nós dois
estávamos descendo pelo meio das vacas no campo do meu avô. O Barão e o Tigre
ameaçaram ir conosco, mas eu pedi que o Maurício enxotasse os cachorros, com
medo de que eles machucassem o filhote de saracura. Não vi as vacas, não tive
medo delas. Eu ia quase correndo ao lado do Maurício, que também estava com
pressa.
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