segunda-feira, 15 de abril de 2013

O CASARÃO DA RUA DO ROSÁRIO

Para os que ainda não leram o casarão da rua do Rosário, fica aqui uma degustação:                                                                                                                                                         
Capítulo I
Este cansaço, agora, me sobe dos pés inchados, me invade pelos olhos e ouvidos; e as narinas, por mais que se esforçassem, não evitaram que eu fosse inundado por aquele cheiro nauseante de flores murchas misturado a fumaça de velas. E sua imagem de cera a ferir com cinza e areia meus olhos, a visão embaçada.

Preciso descansar, com urgência, para pôr pensamentos e emoções em ordem.  É maio e faz o frio de maio, minhas pernas encolhidas estão mudas à espreita, mas não creio que ousem qualquer movimento. Cruzo os braços no peito, fechando-me ao frio, cerro os olhos machucados como algo que sangra.

Reclino ao máximo a poltrona e me ajeito melhor com vontade de dormir, precisando muito de sono, morte provisória que me faça renascer inteiro. Um pensamento, entretanto, espanta-me o sono. Quando me lembro de que amanhã às dez devo fazer parte de uma banca e que venho descansando muito pouco nestes últimos dias, fecho os olhos, pestanas apertadas, consciente de que há urgência em dormir. Mas fico imaginando que flor poderá nascer naquele túmulo, e minha imaginação escorrega entre o trágico e o cômico, com flores que se alternam, às vezes se misturam de maneira ridícula num cromatismo de caleidoscópio, cambiante, instável. Às vezes somem as pétalas, deixando exposta a calvície das corolas pálidas.

O ronco do motor avança pela noite, destemido, supondo que, uma vez contínuo, vai me relaxar para permitir que o sono embaralhe meus pensamentos. Inútil. A noite está do lado de fora, no frio do lado de fora, e consigo esquecer por um segundo as flores possíveis sobre o túmulo para pensar que assim tudo termina: alguns familiares, alguns conhecidos, alguns punhados de terra, apenas simbólicos, depois o profissionalismo de pás e enxadas cobrindo a cova. E o que resta de cada um só pode ser o que fez real ou supostamente. Então chegam os outros, que nem notícias tiveram de quem partiu, e se põem a existir.

E voltam as flores. A sempre-viva, apesar das pétalas secas, não vai nascer sobre o túmulo por ser excessivamente colorida. À tia Benvinda corresponderiam tais pétalas parecendo mortas desde o nascimento. Não fossem suas cores alegres. Às violetas, sobretudo às miúdas e roxas, falta um pouco de preto para que sejam perfeitas naquela terra que o corpo da velha, sem querer ou saber, foi adubar. Minha tia. Sua vida merece flores feitas de noites e friagens.

Um velório silencioso, de vez em quando acordado por algum pigarro desgarrado e vozes ciciadas, como se formadas apenas de vento. Seus irmãos, meus tios, muito concentrados talvez na ideia de que depois da mais velha todos os outros irão no mesmo caminho. Diferentes, apenas tio Ataulfo, que chorava agachado nos cantos engrolando palavras que não existiam, e minha mãe, a caçula, que não se importava em parecer vitoriosa, um ar de triunfo exposto no rosto ainda bonito. Ao ordenar mais café para os que ajudavam a velar sua irmã primogênita, cuja alma desprendia-se naquele momento da matéria imunda, fê-lo com bela voz, audível, quase melodiosa, apesar das palavras triviais, como o café acabou, é preciso que alguém passe um pouco mais.

A mim pareceu que minha mãe estava feliz com a partida daquela sua irmã. Ah, e penso que ela teve motivos de sobra para sentir-se aliviada com o falecimento da primogênita, a guardiã da fé e das tradições, a depositária dos tesouros familiares, tanto os morais quanto os pecuniários, ambos em decadência inevitável. 

À tarde o sol ficou a nosso favor, iluminando o alto dos ciprestes sem nos assar. Um sol suficiente para que não sentíssemos frio. Assisti a tudo da distância de  uns dez passos, com meu semblante torvo sem expressão que pudesse me trair. Os anos de universidade me ensinaram a observar analiticamente e foi o que fiz. Depois de baixado o esquife, o mestre de cerimônias falou com os irmãos da falecida senhora dona Benvinda Gouveia de Guimarães e os instruiu a jogarem, por ordem de idade, um punhado de terra sobre o caixão. O primeiro a sujar a mão direita foi tio Romão. Tive a impressão de que chorava. Ele também, com o aspecto que eu ainda não tinha visto de quem já ouve o trombetear dos anjos, não demora a se despedir. Está acabado esse meu tio. Sua mão tremeu mais do que o normal ao jogar a terra sobre sua irmã. Tia Joana, de olhos inchados, não teve coragem de olhar para onde jogava a terra e por pouco não erra o alvo.

A última a se despedir com punhados de terra foi minha mãe. Seus lábios se alargaram e iluminaram-se-lhe os olhos quando arrojou terra e pedra sobre o esquife, provocando um baque surdo, e todos se espantaram com o gemido grave do caixão ao receber aquela pedrada nas costas.  

3 comentários:

  1. Menalton, é impressionante como você já no primeiro capítulo da obra seduz o leitor para mergulhar na sua literatura.
    "morte provisória que me faça renascer inteiro"
    Sua manipulação vocabular está cada vez melhor e poética.
    Desde já fico no aguardo do lançamento e ler mais uma maravilha literária de sua autoria.
    Ah, inteligente o uso da rodoviária para ilustrar esse capítulo aqui no blog. Rodoviária e morte são duas transições, viagens, que recorrentemente nos deparamos.

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  2. Caro Vitor,
    e você cada vez mais afiado para descobrir os significados subterrâneos. O romance sai em agosto, lançamento previsto para a Bienal do Livro em São Paulo.

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  3. E leia Vitor, é instigante, voce não se cansa!

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