sexta-feira, 12 de abril de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA


O conto que segue pertence ao livro À sombra do cipreste (Prêmio Jabuti - 2000) cuja 6ª edição foi publicada pela Global Editora em 2011.

Estátua de barro


Fixou a touceira onde a caça estava escondida.  Só folhas, só silêncio e folhas empastadas de sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir  fugindo."  (Lygia Fagundes Telles)                                                        

No fundo do espelho, entre taças de cristal e xícaras de porcelana, o olhar de soslaio, severo, inspeciona a pose. Retoca. Este queixo, um pouco mais erguido, excelso, quem sabe, apontando para o horizonte, o espaço das aventuras. Assim. A sobrancelha esquerda, arqueada, assimétrica como um ponto de interrogação, talvez uma dúvida; e os lábios, ah! os lábios, mais firmes, entre cínicos e imperiosos, sem esta lassidão úmida de adolescente. Pronto, só faltava agora um bigode como o dele. Farto, dominador.

Preso entre os dedos, o cigarro aceso sobe até a boca apenas entreaberta, e a fumaça envolve-lhe a cabeça, em torvelinho, até dissipar-se, esgarçada, na lâmina de sol que penetra no aposento através da cortina deflorada e onde minúsculos pontos luminosos gravitam sem peso.

Reabre os olhos machucados pela fumaça, examinando-se, e descobre que, apesar das lágrimas, e do susto, levara sua experiência ao limiar de uma vitória. Recompõe-se. Fascinado pelo som marcial dos próprios passos, dá uma volta em torno da mesa, estufa o peito, ergue os ombros, tenta preencher os vazios que lhe impõe a idade. Um pouco largo, sobretudo nos ombros, o paletó exala um cheiro agridoce: os suores da vida, fumaças (noturnas?), perfumes proibidos. Leve tontura ao tirá-lo ainda há pouco e furtivamente do guarda-roupa dos pais - arca sagrada - e vesti-lo sobre o pijama, excitado pelo cheiro intenso e o sentimento da violação. Sente-lhe agora o peso de armadura, muito mais das histórias que já testemunhou e esconde do que da casimira inglesa de que foi confeccionado. Pára outra vez na frente da cristaleira e, com a mão direita espalmada, quase trêmula, afaga a lapela, onde coloca um cravo imaginário.

Senta-se à cabeceira da mesa de mogno, lugar do patriarca, o cigarro simuladamente esquecido em um canto da boca e o ar compenetrado de quem não se ocupa mais de pequenos vícios, assim como os heróis do faroeste que vê na televisão. Sufocado, porém, não resiste por muito tempo ao desconforto. No banheiro da escola, um dos pirralhos de vigia na porta, ninguém senão o Leonardo - olheiras profundas, sorriso sarcástico e histórias escabrosas - conseguia fumar assim, sem o auxílio das mãos. A tosse irrompe incontrolável e as duas mãos se cruzam violentas afastando a fumaça e desfazendo a estátua recém-composta  no espelho. 

Quando abre por fim os olhos, a pureza do ar restabelecida, sente um vazio no estômago, esta sensação de se estar a ponto de desertar do próprio corpo sem ter onde se refugiar: da porta inexplicavelmente aberta, descobre que o pai o observa - olhar em chamas - mas não sabe há quanto tempo. Tenta inutilmente esconder o cigarro. Inutilmente, pois já não tem o comando dos dedos, de nenhum centímetro do corpo, muito menos dos dedos. Também não consegue virar o rosto, apagar a paisagem enquadrada na porta: seu corpo imenso, feito de sombra e névoa. Toda vez que atravessava a praça - caminho da escola - a mesma vertigem ao passar olhando o duque enorme montado em seu corcel, com a espada erguida comandando o ataque. Quando as nuvens, no alto, serviam-lhe de fundo, então, tornava-se maior a certeza de que ele se movia, de que poderia precipitar-se daquela altura a qualquer momento para esmagá-lo. Sentia-se aterrorizado, mas não conseguia evitar o caminho nem o olhar. Não sabe se o cigarro continua a consumir-se nem tem coragem para conferir. O paletó está muito quente, o sol que penetra por uma frincha da cortina incendeia o ar da copa. Sozinho em casa, nem a mãe nem os irmãos que aparecessem para acordá-lo do pesadelo. No tempo congelado, em que mesmo a tênue escada azul de fumaça já não leva a lugar algum, ele espera, mas parece que entrou numa cena de caça de uma tapeçaria antiga em que o caçador, de arco retesado, aponta para um touceira espessa. O tempo esmaece o verde do bosque, o chapéu do caçador perde o brilho, mas lá está ele, apontando para um coelho amedrontado. Se o vento, se pelo menos o vento levantasse uma ponta da cortina cor-de-palha. Poderia ser o fim, mas também poderia ser o sinal de que chegara o momento da fuga.

Não se dá perfeita conta do que acontece ao levantar-se de um salto, derrubando a cadeira onde estivera sentado e interrompendo no ar o punho fechado. E ainda encara?, ele repete entre dentes, tem coragem de ficar encarando? Sem tempo ou coragem para dizer que não, que apenas não tem força para desviar os olhos. Ao aparar com a mão livre o segundo golpe, tropeçam ambos na cadeira caída e rolam no chão, esmagando o cigarro aceso e mergulhando na pequena lagoa de claridade que o sol desenha no assoalho. Alguma coisa se quebra: em seu peito ou nos bolsos do paletó. Os rostos se aproximam e se afastam, mudamente. O mesmo cheiro, agora mais forte, mais vivo, o mesmo cheiro do paletó. O esforço do pai para libertar os pulsos aprisionados dilata-lhe as narinas e as veias do pescoço. Há quanto tempo não vê assim de perto este rosto? Não se lembra mais de algum dia ter visto estas asperezas na pele, estes fios brancos no bigode.

Mera tentativa frustrada de resolver o mistério da caça e do caçador, ambos presos em uma tapeçaria antiga, coberta de poeira, que o tempo descolore mas não liberta. A respiração ofegante se acalma e, em suas mãos vigorosas, apenas dois pulsos inusitadamente frágeis e sem resistência. Ao levantar-se, prefere não se voltar mais para o espelho da cristaleira, pois percebe aterrado que todas as estátuas são feitas do mesmo barro.

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