Esta semana, a crônica da Carta Capital foi publicada no domingo, mas esperamos até hoje para
manter o nosso calendário.
Acesse a publicação originalO frio está entre nós. Não aguentava mais tanto sol, tanto brilho, este mundo com febre
por Menalton Braff— publicado 19/05/2013 10:43
E o frio, minha gente, finalmente chegou. Tímido ainda, inseguro, mas já me fez assaltar o guarda-roupa e vestir uma daquelas blusas de que eu nem me lembrava mais que eram minhas. Agora, em lugar dos braços suados e da pele ardendo, sinto o conforto macio destas mangas de malha flanelada. É uma carícia de que há muito andava esquecido.
E ele chegou de manhã cedo, quando levantei e dei de cara com o céu encoberto por nuvens cinza. Não aguentava mais tanto sol, tanto brilho, este mundo com febre. O azul estava sempre lá, infatigável, vigilante, sem nos dar o menor descanso. Um azul que já se tornava agressivo de tão invariável. Pois foi nas asas destas nuvens, que agora nos protegem, que o frio chegou.
Agora vou poder tomar o chocolate quente que faz muito me prometi. Tomar chocolate quente está muito longe de ser apenas tomar chocolate. Ele exige um ritual, é uma cerimônia quase religiosa. Primeiro, é preciso estar frio para que o oficiante possa ficar bem agasalhado. Em seguida é bom que se olhe para a superfície do chocolate escondida por baixo do vapor. O discreto marrom que então se descobre é único e nos lembra alguma coisa como uma cabana cercada de neve no alto de uma montanha suíça. É um marrom pelo menos espiritual de tão concentrado que ele é. E não se deve tomar o chocolate como quem se alimenta, como quem pratica um ato necessário. O prazer só entra no capítulo das inutilidades que fazem a vida valer a pena: a liberdade. Os goles devem ser curtos, com o líquido demorando-se na boca, antes de descer lentamente, aquecendo o corpo e acompanhando o ritmo das reflexões que ele sugere.
À noite, a gente se enrola num cobertor e vai pra frente da
televisão ou fica lendo um livro, porque sair, numa noite fria, só em caso de
necessidade, como ir ao teatro, jantar com amigos naquele restaurante, animar a
festa junina das crianças. Se a noite for mais ou menos longa e as companhias
valerem a pena, uma travessa de pipoca e uma garrafa de vinho ajudam a se ser
feliz. Filme, claro, de preferência europeu. Bergman, Felini, Buñuel. O
surrealismo, principalmente, vai bem com o frio. Ninguém vai querer comentar o
filme até de madrugada, mas cada um, à sua maneira, terá viajado por
territórios recém-descobertos.
Se você, meu caro leitor, faz parte da maioria, que prefere
o calor para ter a oportunidade de vestir pouco, se você gosta de andar mais...
digamos, natural, assim, quase de tanga, desculpe a opinião deste pobre
representante da minoria, mas é preciso expressá-la. Você não pode se esquecer
de que dispõe de uns trezentos e cinqüenta dias por ano como você gosta: sol,
céu azul, calor de secar pimenteira. Deixe-nos nós, os da minoria, curtir estes
cerca de quinze dias de frio. É nossa oportunidade de desfilar, vestidos com
maior elegância. Tenha um pouco de paciência, leitor amigo, amanhã ou depois
voltará a ser tudo como você tanto gosta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças