sábado, 29 de junho de 2013

CARTAS A UM JOVEM POETA (4)

Continuemos a leitura das "Cartas a um jovem poeta", daquele que foi um dos maiores poetas do século XX.

Temporariamente em Worpswede,
perto de Bremen,
16 de julho de 1903

Há mais ou menos dez dias deixei Paris, bastante indisposto e cansado, e viajei para uma grande planície nórdica, cuja amplidão e tranqüilidade e céu deveriam me restituir a saúde. Entretanto me deparei com um longo período de chuva, que só hoje começa a clarear um pouco sobre esta terra em que o vento não pára de soprar; e eu faço uso do primeiro instante de claridade para
saudá-lo, meu caro.
Caríssimo senhor Kappus, deixei uma carta sua por muito tempo sem resposta, mas isso não significa que a esqueci. Pelo contrário, ela é do tipo de carta que alguém relê quando encontra no meio da sua correspondência, e eu o reconheci nela como se pessoalmente. Era a carta de 2 de maio, da qual o senhor com certeza recorda. Quando a leio, como agora, na grande quietude desta distância, fico comovido por seu belo cuidado com a vida, mais ainda do que já tinha ficado em Paris, onde tudo reverbera e cessa de ecoar de um modo diferente por causa do barulho excessivo que faz as coisas vibrarem.

Aqui, onde há uma região poderosa em torno de mim, sobre a qual avançam os ventos vindos do mar, aqui sinto que nunca um homem poderá dar uma resposta às perguntas e aos sentimentos que têm vida no fundo do seu ser. Pois mesmo os melhores erram nas palavras quando elas devem significar o que há de mais leve e quase indizível. Apesar disso, acredito que o senhor não precise ficar sem uma solução, caso se atenha  às coisas que lhe são semelhantes, nas quais meus olhos descansam agora. Se o senhor se ativer à natureza, ao que há de mais simples nela, às pequenas coisas que quase não vemos e que, de maneira imprevista, podem se tornar grandes e incomensuráveis; se o senhor tiver esse amor pelo ínfimo e procurar com toda simplicidade conquistar como um servidor a confiança do que parece pobre  -  então tudo se tornará mais fácil, pleno e de algum modo reconciliador para o senhor, talvez não no campo do entendimento, que fica para trás, espantado, mas em sua consciência mais íntima, no campo da vigília e do saber.

O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração. Peço-lhe que tente ter amor  pelas próprias perguntas,  como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo.  Viva  agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas.

Talvez o senhor já traga consigo a possibilidade de construir e formar, como um modo de viver especialmente  afortunado e puro; eduque-se para isso. Mas aceite com grande confiança o que vier, e se vier apenas de sua vontade, se for proveniente de qualquer necessidade de seu íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um fardo, verdade. Mas é difícil a nossa incumbência, quase tudo o que é sério é difícil, e tudo é sério. Se o senhor reconhecer apenas isso e chegar a conquistar, a partir de si, de  sua disposição e de seu modo de ser, de sua experiência e infância e força, uma relação inteiramente própria (não dominada pela convenção e pelo hábito) com a carne, então o senhor não precisa mais ter receio de se perder e se tornar indigno de sua melhor posse.

A volúpia corporal é uma vivência dos sentidos, não difere do simples olhar ou da pura sensação de água na  boca causada por uma fruta; ela é uma grande experiência, infinita, que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o brilho de todo saber. Não é ruim o fato de a aceitarmos; ruim é o fato de que quase todos abusam dessa experiência e a desperdiçam, usando-a como um estímulo nos momentos cansados de sua vida, como uma distração, em vez de uma concentração para alcançar pontos mais altos.

Os homens converteram até mesmo o ato de comer em uma outra coisa: carência por um lado e excesso por outro obscureceram  a clareza dessa necessidade; e igualmente obscurecidas se tornaram todas as necessidades profundas e simples nas quais a vida se renova. Mas o indivíduo pode esclarecê-las para si mesmo e viver claramente (senão o indivíduo que é muito dependente, pelo menos o solitário). Ele pode recordar que toda a beleza nos animais e nas plantas é uma forma tranqüila e duradoura de amor e anseio, pode ver o animal, como vê as plantas, unindo-se paciente e voluntariamente, multiplicando-se e crescendo não por desejo físico nem por dor física, voltando-se para necessidades que são maiores do que o desejo e a dor, mais poderosas do que a vontade e a resistência.

Ah, que o homem pudesse aceitar humildemente esse segredo, do qual a Terra está repleta até em suas menores  coisas, e o suportasse com seriedade, sentindo como ele é terrivelmente pesado, em vez de tomá-lo de maneira leviana. Que ele tivesse respeito diante de sua própria fecundidade, que é  uma  só, mesmo parecendo ora espiritual ora corporal; pois também a criação espiritual provém da física, constitui uma mesma essência, apenas como uma repetição mais silenciosa, mais cativante e eterna da volúpia corporal. "A idéia de ser um criador, de gerar, de formar" não é nada sem a sua contínua e grandiosa confirmação e  realização no mundo, nada sem o consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos animais. E só por isso o seu gozo é tão indescritivelmente belo e rico, porque é feito das recordações herdadas da geração e da gestação de milhões de seres. Em um pensamento criador revivem milhares de noites de amor esquecidas que o preenchem com altivez e elevação.

 Assim, aqueles que se juntam durante as noites e se entrelaçam em uma volúpia agitada fazem um trabalho sério, reúnem doçuras, profundidade e força para a canção de algum poeta vindouro que surgirá para expressar deleites indizíveis. Eles convocam o futuro; mesmo que errem e se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo, um novo homem se elevará, e a partir do acaso que parece se realizar aqui desponta a lei pela qual um germe forte e resistente se lança em direção ao óvulo, que vem receptivo a seu encontro. Não se deixe enganar pelo que é superficial; nas profundezas tudo se torna lei. Os que vivem mal e de modo falso o segredo (e são muitos) o perdem só para si mesmos, e no entanto o transmitem como uma carta fechada, sem saber. Não se deixe confundir pela multiplicidade dos nomes e pela complicação dos casos. Talvez se encontre acima de tudo uma grande maternidade, como anseio comum. A beleza da virgem, uma criatura que (como o senhor diz de modo belo) "ainda não cumpriu nada", é maternidade que se anuncia e se prepara, que se teme e se anseia. A beleza da mãe é maternidade que serve, e a da mulher idosa é uma grande recordação. Também no homem a maternidade, ao que me parece, é corporal e espiritual; sua produção também é um modo de dar à luz, quando ele cria a partir da plenitude de seu íntimo está dando à luz. Talvez os sexos tenham mais afinidade do que se considera, e a grande renovação do mundo talvez venha a consistir no fato de que o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos equivocados e de todas as contrariedades, não se procurarão mais como adversários, mas como irmãos e vizinhos, unindo-se como  seres humanos,  para simplesmente suportar juntos, com seriedade e paciência, a difícil sexualidade que foi atribuída a eles.

Mas tudo o que talvez um dia ainda seja possível para muitos o solitário pode, já agora, preparar e construir com suas mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e suporte a dor que ela lhe causa com belos lamentos. Pois os que são próximos do senhor estão distantes, é o que diz, e isso mostra que o espaço começa a se ampliar à sua volta. Se o próximo está longe, então o que é distante vaga entre as estrelas, na imensidão. Alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja seguro e tranqüilo diante deles, sem perturbá-los com as suas dúvidas nem assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender.

Procure constituir com eles algum tipo de comunhão simples e fiel, que não precise ser alterada à medida que o senhor mesmo se modifica cada vez mais. Ame neles a vida em uma outra forma e seja indulgente com pessoas mais velhas que temem a solidão na qual o senhor tem confiança. Evite alimentar aquele drama que sempre existe entre pais e filhos; ele desperdiça muita força dos filhos e consome o amor dos pais, um amor que atua e acolhe, mesmo que não seja compreensivo. Não reivindique deles conselho algum e não conte com compreensão alguma, mas acredite em um amor que foi conservado para o senhor como uma herança, confie no fato de que há nesse amor uma força e uma bênção, das quais não escapará para ir muito longe.

É bom, antes de tudo, que o senhor exerça uma profissão, porque isso o tornará independente e o entregará por completo a si mesmo, em todos os sentidos. Aguarde com paciência para saber se a sua vida mais íntima ficará restrita pela forma dessa profissão. Eu a considero muito difícil e muito exigente, uma vez que é carregada de grandes convenções e não deixa quase nenhum espaço para uma concepção pessoal de suas tarefas. Mas a sua solidão será um pouso e um lar, mesmo em meio a relações  muito hostis, e a partir dela o senhor encontrará os seus caminhos. Todos os meus desejos estão prontos para acompanhá-lo e a minha confiança está com o senhor.
Seu,
Rainer Maria Rilke

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