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A fúria do cachorro lembrava o ser humano, sobretudo alguns seres humanos que têm tido muito espaço na mídia nestes últimos tempos
por
Menalton Braff — publicado 02/07/2013
08:52
A fúria do cachorro lembrava o ser humano, sobretudo alguns seres humanos que têm tido muito espaço na mídia nestes últimos tempos

Sempre olhei com bastante desconfiança para a verdade dos
clichês. É uma verdade suspeita, com cara de boa moça, mas que se protege nas
sombras de nossa preguiça. O estereótipo, embora um dos pilares de nossa cultura,
quase nunca suporta uma acareação com a realidade. Uma dessas verdades tenta convencer-nos de
que “o cão é o melhor amigo do homem”.
Outro dia, entrando em Batatais pelo fim da avenida 14 de
Março, testemunhei uma cena que me chocou e que tento agora esquecer
registrando aqui o fato. As praças e avenidas de Batatais, como todos sabem,
são das mais bem cuidadas do Brasil, e isso não é um estereótipo. A avenida 14
de Março é dividida por canteiros longos e verdes em quase toda sua extensão.
Uma cerca bem aparada de pingos-de-ouro faz uma espécie de moldura dos
canteiros, o desenho de seu contorno. É um espetáculo que me encanta sempre que
vou até lá.
Equilibrado no alto da carroça, com um cabo de vassoura na mão, o carroceiro era a própria imagem da impotência. O cachorro nem ao menos se dignava desviar os olhos para aquela haste frágil de madeira com que tentavam afastá-lo de sua vítima.
O que vi foi uma carrocinha, dessas puxadas por um só
cavalo, em cima do canteiro, com os pneus enterrados no renque de
pingos-de-ouro. Atrelado, ainda, à carroça, um cavalo com as patas para o alto.
Evidentemente um movimento brusco sobre o canteiro havia desequilibrado o
animal, que se debatia. Um cachorro muito grande, com o corpo preto e parte do
pescoço e da cabeça manchados de branco, investia furiosamente contra a cabeça
do cavalo e enfiava-lhe os dentes furioso. Seus latidos eram de ódio, um ódio
de muito difícil explicação. Bem, atribuir sentimentos a um animal corre o
risco da falsidade, pois são seres amorais, portanto, inculpáveis. Eu sei,
claro, que as razões dos animais são incompreensíveis para nós, muitas vezes,
assim como seus sentimentos. Mas o modo como ele rosnava, latia, atirava-se
contra a cabeça desprotegida do cavalo mordendo-lhe principalmente os beiços
era uma coisa assustadora. Tentando levantar-se sem conseguir, por causa dos
varais da carroça, o cavalo tinha a cabeça toda coberta de sangue. E isso não é
metonímia.
Equilibrado no alto da carroça, com um cabo de vassoura na mão, o carroceiro era a própria imagem da impotência. O cachorro nem ao menos se dignava desviar os olhos para aquela haste frágil de madeira com que tentavam afastá-lo de sua vítima.
A distância, um grupo de umas seis pessoas observava com
medo o que acontecia.
Tenho visto muita reportagem sobre cães atacando seres
humanos. Cães soltos na rua ou malseguros em seus quintais. Pelo que soube,
isso acontece com maior freqüência do que seria lícito supor. Existem leis que
protegem os cães. Precisamos, com urgência, de leis que nos protejam deles.
Entre ouvir um repórter mostrando o filhote de demônio
olhando para a câmera com a maior cara-de-pau e vê-lo ao vivo dilacerando a
cabeça de um cavalo vivo, que por algum acidente caíra entre dois renques de
pingos-de-ouro, a diferença é muito grande. Os roncos do cavalo (e eu nunca
tinha ouvido um cavalo roncar) o sangue a escorrer, os latidos furiosos do cão,
tudo isso ali, a dois, três metros de distância, me deixou com o estômago
embrulhado e sem o governo de meu pensamento.
Passei rapidamente, fustigado pelo relógio, que não pára e,
se pára, não segura o tempo. Mas, o que vi, teimosamente me acompanhou durante
o dia. Não consegui evitar de rever várias vezes aquela cena grudada na minha
memória. Então não houve jeito senão pensar que a ferocidade do cachorro
lembrava muito o ser humano, sobretudo alguns seres humanos que têm tido muito
espaço na mídia nestes últimos tempos.
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