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A gente tenta resistir, se esforça, mas a literatura é um
grande diálogo em que se tem de enfrentar vozes, muitas vozes, remotas ou
recentes, um emaranhado de vozes onde tentamos distinguir alguns dos
interlocutores. Os temas nos chegam da vida e dos livros. Capitulamos para
acabar refazendo o que está feito. Não é a primeira vez que a realidade me traz
de volta a ficção como se fora esta cópia daquela. A Clarice Lispector tomava
muito cuidado com as palavras porque ela sabia que as palavras engendram vidas.
Mas a Clarice era maga, ela fabricava coisas.
Confesso que a princípio me assustei. Chegou aquele bando em
revoada, invadindo tudo, tomando conta do espaço, expulsando-nos dali. Um dos
meninos era da cor da terra, trajava uma camiseta parda e usava uma bermudinha
sem cor. Me parece que era meio igual aos outros todos.
Escolhi um ponto estratégico, de onde pude observar aquela batalha, que, apesar do susto, me interessava. De onde me abriguei, pude ver os vendedores do estande, o cabelo de alguns literalmente de pé (que agora é moda), o cabelo de todos eletrizado, assim como seus olhos. Tinham ordens para não interferir, a não ser que o prejuízo se tornasse iminente. Durante uns quinze minutos não tiveram sossego.
A literatura é um grande diálogo em que se tem de enfrentar
vozes. A Clarice Lispector tomava muito cuidado com as palavras porque sabia
que engendram vidas
por Menalton Braff
— publicado 20/08/2013 13:08
Escolhi um ponto estratégico, de onde pude observar aquela batalha, que, apesar do susto, me interessava. De onde me abriguei, pude ver os vendedores do estande, o cabelo de alguns literalmente de pé (que agora é moda), o cabelo de todos eletrizado, assim como seus olhos. Tinham ordens para não interferir, a não ser que o prejuízo se tornasse iminente. Durante uns quinze minutos não tiveram sossego.
Uns quinze minutos. Esse foi o tempo necessário para que o
bando chegasse, olhasse, visse e saísse. Em seu rastro, sinal de destruição
nenhum.
Além dos vendedores, consegui focalizar um dos meninos que
acabavam de chegar. Foi direto a uma prateleira, não levou mais de quinze
segundos para escolher um livro, sentou-se ali mesmo, no chão, pois não dava
mais para esperar. Abriu o livro, com aquelas duas mãozinhas quase impossíveis,
e se pôs a ler a história, a ver as figuras, não sei. De onde estava, apenas
via que seus lábios se moviam e que seus olhos brilhavam. Um brilho tão intenso
que tudo em volta começou a flutuar ao ritmo de uma sinfonia ilimitada. O
rostinho terroso, então, começou a se transfigurar, assumindo uma expressão
gloriosa.
Eu estava com pressa, pois havia uma multidão de umas duas
ou três pessoas à espera de um autógrafo alguns estandes adiante. Quem disse
que eu conseguia sair do lugar? Naquele instante, o mundo em volta perdeu
inteiramente o significado: só aquele menino e seu livro pulsavam em meus
sentidos. Ele ria, me parece que falava, não sei se lambia ou cheirava o livro.
De repente ele o fechou e olhou para cima, cismarento. Tentei acompanhar seu
olhar. Para onde estaria ele viajando agora?
Quando o menino reabriu o livro, percebi em seu rosto sinais
de concentração. Voltou à leitura com o cuidado de um soldado estudando o
terreno. Acho que havia, finalmente, resolvido algum mistério ou, pelo menos,
havia-se deparado com algum, que era preciso desvendar.
Seus colegas dispersaram-se pelos estandes vizinhos, onde
outros vendedores puseram cabelos e olhos de pé, mas sem interferir, como lhes
fora ensinado. Relanceei o olhar pelo recinto da feira e imaginei o Brasil todo
ali dentro e achei que aquilo era uma luz... vá que seja... no fim do túnel.
Olhei de volta para onde estivera o menino e vi apenas um
livro aberto com as folhas movendo-se. Se não me engano, ouvi uma voz de criança,
que vinha lá de dentro. O menino resolvera penetrar em seu mistério.
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