Natasha Vicente da Silveira COSTA*
Tapete de silêncio surgiu no panorama literário de 2011 pela
mão de Menalton Braff, escritor de 19
obras – dentre livros de contos, romances e novelas juvenis – e vencedor do
Prêmio Jabuti na categoria Livro do Ano Ficção em 2000 com À Sombra do Cipreste
(1999).
Se Braff optou por sugerir obliquamente por meio da
plasticidade das figuras sensoriais no romance Moça com chapéu de palha (2009)
e pela adição progressiva de informação em um crescendo análogo à obra musical
que intitula Bolero de Ravel (2010), o autor concentra a prosa poética de
Tapete de silêncio em um trabalho de metalinguagem inserindo o coro grego em
âmbito romanesco.
Primeiramente, Tapete instaura no título a sinestesia por
meio dos diferentes estratos sensoriais que se combinam no presságio das duas
reflexões basilares engendradas pelo romance: de um lado, há proteção, sujeira
e esconderijo e, de outro, ocultamento, sigilo e mudez.
O tema do romance – as relações de poder – é figurativizado
por um enredo que revolve sobre a execução de um crime encomendado na pacata
cidade interiorana de Pouso do Sossego, cujo topônimo, contraposto ao
desenvolvimento da narrativa, descortina a figura de linguagem da ironia.
O comerciante e líder Osório é a personagem em que recairá a
focalização e que permitirá o desenvolvimento da temática do poder, da
hierarquia social e da influência:
A dificuldade de entendimento da maioria das pessoas é com o
que existe e não se vê. É uma forma sem nitidez, em mudança, como uma fumaça escalando
o espaço, dançando e se contorcendo. Minha autoridade é que faz o Camilo
continuar estourando a marreta na parede, o estrondo cada vez menor. Isso é um
poder. Cada um tem o seu. Sobre alguém. O doutor Madeira tem um poder maior do
que o meu, pois ele quer e eu faço. Pare ele sou assim como o Camilo é para mim.
Mas ele também tem seus receios, não pode fazer tudo o que tem vontade. (BRAFF,
2011, p. 51).
Osório não participa somente de uma expedição criminosa, mas
também de um processo que envolve reflexão e autoconhecimento. A linguagem que
constrói as suas e as demais ponderações faz uso de frases entrecortadas que
tendem à oralidade, como se vê em “Muito mais fácil: um cabo da inteira
confiança do doutro Madeira. Eu acho. O prefeito, nem se fala, só falta pedir a
bênção na frente de todo mundo.” (BRAFF, 2011, p. 52).
Ressalta-se também que o romance combina o discurso indireto
e indireto livre e, não aramente, resvala na sonoridade da prosa poética: “Ele
não confessava, mas sua esposa, quando eu sentava em seu colo, dizia, Seu avô
não era capaz de pentear o cabelo sem perguntar ao padre se podia.” (BRAFF,
2011, p. 9).
A estrutura artística de Tapete traz à tona um elemento
essencial das tradições do drama por meio das 10 aparições do coro que se somam
aos outros 14 capítulos. Pode-se afirmar que uma das funções dessa
intertextualidade composicional, respeitados alguns limites estritos de gênero,
seja a ampliação da narrativa para além do conflito pessoal vivido por Osório.
Dessa forma, o coro do romance funcionaria como uma ponte entre o individual e
o social.
Se for pertinente relembrar de modo sucinto o papel do coro
nas tragédias para melhor elucidar o processo de narração do romance, vale destacar
que, segundo Aristóteles (1988, p. 39), “O coro também deve ser considerado
como um dos atores; deve fazer parte do todo, e da ação, não à maneira de
Eurípedes, mas à de Sófocles”.
Enquanto a tragédia constituía-se por um princípio de
alternância entre o coro e as cenas, Tapete faz revezar a narração em primeira
pessoa de Osório e a narração do coro, similar à terceira pessoa e complementar
ao restrito campo de conhecimento do protagonista.
Entretanto, se o coro das tragédias de outrora veiculava a
opinião pública, aconselhava e tecia críticas a valores sociais e morais, esse
papel em Tapete é transfigurado na própria autoconsciência de Osório, que
rumina moralidades e censuras em suas conjeturas não dialogadas ao sentir a
repugnância, o horror e o medo de seu ato criminoso iminente. A opinião
pública, diversamente, toma a forma das “almas de pouca densidade” (BRAFF,
2011, p. 9), ou seja, dos habitantes opiniáticos e preconceituosos da cidade
decadente de Pouso do Sossego.
Nesse sentido, o romance descreve um processo de reflexão
intrinsecamente relacionado ao ato homicida do protagonista. A voz de Osório em
Tapete questiona:
Como saber onde a vida acaba e a morte se torna o fim, a
morte sem volta, sem nenhum registro de tudo que foi a vida? Onde as coisas têm
seu início e onde estará seu fim? Há coisas que não acabam, apenas se transformam
em outras. Quem é que sabe o que resta da mais antiga na mais nova? (BRAFF,
2011, p. 97).
As especulações de Osório o caracterizam como um pensador da
estrutura do poder de Pouso do Sossego e suas ações o marcam como contribuinte
para disseminar a ordem e a segurança local. Não é possível entrever, no
romance, um comando superior que promova a salvação espiritual desse indivíduo
de uma sociedade interiorana cujas hierarquias, sujeitos ameaçadores e
submissos já estão claramente determinados há eras.
Em Tapete de silêncio, o enfraquecimento do elemento
religioso – em favor da exposição neutra da consciência de Osório – é
pontualmente desenvolvido no Capítulo 13, em que os relatos do protagonista na
igreja são intercalados com as orações e trechos bíblicos. O discurso religioso
não interage com o de Osório, caracterizando simplesmente uma composição
justaposta.
Além disso, a reprodução de determinadas citações religiosas
em Tapete ecoa a estrutura de poder construída ao longo do romance. O discurso
bíblico em “Mas para que conheça que amo ao Pai, e que faço como ele me
ordenou.” (BRAFF, 2011, p. 112) e “As palavras que eu vos digo, não as digo de
mim mesmo: mas o Pai, que está em mim, esse é o que faz as obras.” (BRAFF,
2011, p. 111) remete à fala de Osório em “Mas eu fui apenas um instrumento do
doutor Madeira, então o único responsável foi ele?” (BRAFF, 2011, p. 104) e
“[...] adivinho que entre todos, sou o eleito como aquele que arca com toda a
carga de culpa de nossa ação. Mas não, fui apenas uma ferramenta nas mãos do
doutor Madeira.” (BRAFF, 2011, p. 75).
Em detrimento da salvação de uma alma, instaura-se uma nova
representação do jogo de poder inerente ao ato de mandar (imputável a Deus e ao
Dr. Madeira) e de obedecer (atribuível a Jesus e a Osório).
Em Tapete, tanto o elemento exterior e social da tradição
religiosa quanto o interior das reflexões filosóficas de Osório sobre a morte e
a culpa se tornam dispensáveis diante de uma absolvição midiática mentirosa. O
protagonista tem sua inocência homologada falsa e silenciosamente e se sente
seguro por pertencer à cadeia de poder que mantém as tradições e a disciplina
na cidade.
Essa abordagem dicotômica, que se refere tanto à esfera
política quanto à esfera familiar ou pessoal, é resumida na relação entre o
poderoso Dr. Madeira e Osório. Caso não cumpra a tarefa que lhe foi designada,
o protagonista contrariará perigosamente o acordo de proteção e parceria que
rege o relacionamento de ambos e, caso coloque em prática o plano criminoso,
contradirá seu ambíguo sistema pessoal de valores.
Considerando tais apontamentos, parece plausível que
Menalton Braff esteja suscitando questionamentos acerca da modernidade
perpassada de conteúdo midiático inexato e de hierarquias cegas de poder.
Ademais, a possível afinidade de estrutura entre Tapete e as formas do drama
grego parece reforçar esta ideia de Osório sobre o desenvolvimento humano:
“Quanto ao mundo, continua no mesmo lugar” (BRAFF, 2011, p. 14).
Enfim, é possível ver que a interpretação desse curto
romance de 123 páginas não se esgota, obviamente, em considerações de gênero e
enredo apesar do admissível viés comparativo. Seria igualmente fértil, por
exemplo, uma análise bakhtiniana desvendando as implicações do circo e das
ações do povo como elementos demonstrativos da literatura carnavalesca e sua
função no desdobramento da narrativa.
Tapete de silêncio poderá instigar, assim, pesquisadores da
área de estudos comparados, gêneros, romance brasileiro contemporâneo e prosa
poética.
*Natasha Vicente da Silveira Costa é doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP; Faculdade de Ciências e Letras; CEP 14800-901; Araraquara (SP); Brasil. Email: natashavsc@yahoo.com.br
REFERÊNCIAS
BRAFF,
Menalton. Tapete de silêncio. São Paulo: Global, 2011.
ARISTÓTELES.
HORÁCIO. LONGINO. A poética clássica. Introdução de Roberto de
Oliveira
Brandão. Tradução direta do grego e do latim por Jaime Bruna. 3. ed. São
Paulo:
Cultrix, 1988.
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