
Os sapatos de meu pai
O dia começou
completamente sexta-feira, pensei enquanto levava o saco de lixo para a
calçada. Um céu úmido chuviscava irritação sobre a cidade indefesa e fria,
obrigando-me a proteger o rosto do vento molhado e escolher o lugar onde punha
os pés. As lojas vizinhas também levantavam suas portas onduladas. Minha rotina
dos dias pares, nossa escala entre as balconistas.
A três passos do
poste, junto ao qual deixaria minha carga, dois sapatos largos e sujos,
tamanhos, o direito esfregando-se na guia para se livrar do barro. Meu sangue
parou e todo meu corpo também. Só meus olhos mantinham alguma vida, mas não
ousavam subir além de dois palmos das pernas. O medo grudava-me no céu da boca
um gosto indeciso entre o morno e o frio. Qualquer coisa amarga em uma colher:
toma, minha filha, vai te fazer bem. Eram os sapatos de meu pai. Por tudo que
sei dele, eram os sapatos de meu pai.
Já não sei se o que me
resta dele, de meu pai, são reminiscências minhas, situações que eu mesma vivi,
ou são as lembranças de minha mãe, casos que ela me contava com olhos
brilhantes, muitas vezes de lágrimas, outras vezes de pura paixão.
Paralisada no meio do
caminho, não conseguia desgrudar os olhos daquele sapato embarrado
esfregando-se na aguda quina da guia. A garoa apertava, mais densa, e um
pequeno córrego escorria pelo meio-fio. Quase alegre. A poucos metros abaixo,
entretanto, sem nenhuma resistência, despejava-se na boca-de-lobo e sumia da
face escura da sexta-feira. Lá
embaixo.
Entre sombras e
silêncios, nossas horas sempre passaram muito lentas. À noite, principalmente,
tínhamos apenas uma à outra para suportar o tempo, quando a televisão não nos pudesse ajudar. Um belo homem, ela me
dizia depois de um suspiro. A imagem que dele guardo é de um homem alto como
uma árvore, testa larga e olhos castanhos muito vivos. Um rosto liso, de beleza
quase feminina. Renovei durante muitos anos essa imagem na foto que minha mãe
mantinha escondida e que talvez ainda mantenha. Nunca mais a vi. Não que ela
tenha mudado o esconderijo, mas porque finalmente desisti de esperá-lo.
Ele chegava com os
bolsos cheios de balas. Não era longe, a farmácia, e ele enchia os bolsos do
jaleco branco no supermercado que ficava em seu caminho. Era assim que chegava.
E me botava no colo para ver-me descascando as balas com meus dedos aprendizes.
Ria muito, então, como se estivesse muito feliz. Ele tinha um sorriso de seu
tamanho. Impossível imaginar que um dia não quisesse mais esperar o almoço
comigo sentada em seu colo. Desde esse dia, uma das caixas do supermercado não
apareceu mais em seu posto de trabalho. Só muito mais tarde, minha filha, muito
mais tarde. Minha mãe só percebeu a ausência daquela moça muito mais tarde.
Como se aquilo fosse um acidente, uma situação provisória. Até hoje me parece
que ela pensa assim.
Por muitos anos meu
pai foi apenas um homem de jaleco branco. Até o momento em que descobri uma
fotografia escondida por baixo de papéis velhos no fundo de uma gaveta da
cômoda. Alguns lugares da casa me impunham medo e respeito, eram santuários que
não se podia profanar. Havia verdades interditas, segredos que era melhorar
ignorar. Guardei com cuidado a foto no mesmo lugar onde a descobrira. Daí em
diante, ele passou a ser personagem de uma paisagem com árvores e alguns
canteiros de rosas, como na orla de algum parque.
Quando via minha mãe
perdida em seu olhar distante, dependurada e sozinha, sentia medo de que também
ela não encontrasse mais o caminho de volta. Então grudava-me em sua mão.
Conta, mãe, conta daquela vez em que fomos visitar o zoológico, nós três. Ela
me punha sobre suas pernas e começava a contar sem pressa que a tarde estava
muito clara, sem nuvens, porque era uma tarde de primavera e que, depois de
termos visto macacos e javalis, tigres e leões, depois de termos visto búfalos
sonolentos, aquelas montanhas sombrias que eu não poderia entender, eu olhei
para o céu azul e apontei soluçando o bando de andorinhas, dizendo que sentia saudade de pegar uma
andorinha na mão. Então os dois riram de clara alegria, debaixo do céu azul,
numa tarde de primavera. E os olhos de minha mãe brilhavam de pura paixão, ao
recontar a história. Meu pai levantou-me no ar como se fosse fazer-me voar e
deu-me um beijo na testa. Tolinha, andorinhas não se pegam na mão. E a brisa,
que mal sacudiu os galhos das árvores, naquele momento, anunciava o vento que
traria as nuvens, antecipando a noite.
Sujo ainda, o sapato
direito planta-se na calçada, plantado firme, enquanto o esquerdo começa a
mesma operação que me mantinha quase sem respiração. De relance, embora, se o encarasse,
poderia reconhecê-lo. Provavelmente. Mas não tive coragem. O tempo sempre deixa
rastros em seu caminho e o rosto poderia ter-se camuflado. O córrego diminuiu,
não passando então de um risco de água que nem barulho fazia ao precipitar-se
na boca-de-lobo. Senti minhas pernas dormentes e tive medo de perder o
equilíbrio.
Numa tarde em que
lavava a calçada, tive aquela mesma sensação de que o coração pesado jamais
voltaria a funcionar. Aquele gelo amargo na boca. Um homem alto, de pasta na
mão, apertou a campainha aqui de casa. Abandonei vassoura e mangueira onde
estavam e entrei com as pernas e o coração em disparada, gritando por minha
mãe. Só podia ser ele, pensava enquanto corria, e repeti em voz alta no fundo
do quintal. Era um homem do censo, descobrimos em seguida, com o coração quieto
de tão murcho. Os sapatos de seu pai, minha filha, você nunca viu aquele
tamanho de sapatos.
Algumas vezes ainda me
deixei enganar pelo desejo, quase sempre mais forte do que os sentidos, até
que, por fim, nunca mais procurei a fotografia clandestina, no fundo da gaveta.
O gerente me chamava
da porta da loja e eu, de onde estava, joguei o saco de lixo na direção do
poste. Sem erguer a cabeça. Não, agora não,
ia pensando enquanto voltava para a loja, agora não adianta mais, porque
agora já sou.
Antes de entrar, ainda
olhei para trás e percebi que os sapatos se afastavam rapidamente. Apesar do
esforço, continuavam sujos daquele barro que era agora sua própria cor.
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