quinta-feira, 21 de novembro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue pertence ao livro À sombra do cipreste, editado pela Global Editora em 2011 (6ª ed.)

Elefante azul
O imenso dorso dobrado sobre a bacia de alumínio, dentro da qual, calada, prende meus pés cobertos de barro, ela me esconde os olhos úmidos e vermelhos, bem os vi há pouco, de relance, quando foi à porta me chamar e me recebeu resmungando contra a vida miserável que se leva por causa de crianças que passam o dia a chafurdar na terra do quintal. Não chegava a ser uma repreensão, me parece, aquela voz inusitadamente grave, talvez rouca, livre, entretanto, de qualquer aspereza, e a suavidade do gesto com que me fez entrar, embora o rosto esquivo, como se não me visse, apenas mais uma das sombras que, à noite, costumam vir esconder-se aqui dentro de casa.

É fraca, muito fraca mesmo, esta luz amarela que, silenciosa, desce do teto e escorrega pelas paredes nuas, ricocheteando sem alvoroço nos ângulos mais salientes de nossos parcos móveis de cozinha. Tão fraca que daqui mal distingo a cor da cristaleira e do elefante azul de tromba erguida e orelhas alceadas, inutilmente tentando fingir um aspecto selvagem que nunca teve ou terá, prisioneiro de sua imobilidade. Sobre a mesa, ao lado, os pratos emborcados e mudos são duas renúncias em que a luz finalmente pousa e se acomoda.

A vida miserável que se leva por causa de crianças  que passam o dia a chafurdar na terra do quintal. Não sei se ela volta a resmungar, compelida pela necessidade de interromper tamanho silêncio, ou se é apenas o eco retornando de suas viagens. Me aguço por inteiro na ânsia de compreender e só consigo me sentir estúpido, tronco seco arrastado pela enxurrada. Também não ouso responder, enredado em fios que não enxergo, e me eriço, engatilhado, pois só disponho de reações físicas. O ritmo de sua respiração se altera, eu ouço, então me agarro às bordas da cadeira para manter os pés mergulhados na água e não atrair atenção alguma sobre mim. Suas mãos,  excessivamente brancas, sobem e descem pelas minhas pernas, lentas, mãos em cujas conchas tantas vezes me protegi, subitamente trêmulas, hesitantes, adejando lívidas pouco acima das ondas. Tento concentrar-me na sensação ambígua que me causa o contato da água morna escorrendo-me pelas pernas, antes que se precipite ruidosa na superfície do mar encapelado onde a lua fraca, muito fraca, e amarela, se estilhaça em estrelas e se recompõe ao ritmo das mãos, que sobem e descem, lentamente. Por alguns momentos perco o sentido de mim mesmo e dos perigos amoitados nas sombras que passeiam livremente pela cozinha. Nada existe além do gorjeio prateado da água e destas mãos excessivamente brancas.

Percebo afinal que cessaram seus movimentos e me preparo para encará-la, para ouvir-lhe as revelações, mas ela continua dobrada sobre a bacia de alumínio, penedo imóvel sobre o abismo, o coque a esconder-lhe a nuca e o dorso imenso e frágil coberto de musgo. Como se não me visse, apenas mais uma das sombras que, à noite, costumam vir esconder-se aqui dentro de casa.

Neste estado de sustos e esperas tenho vivido as últimas horas, sem saber o que é, de fato, e o que me invento para tentar entender os significados. Desde hoje cedo, quando acordei para mergulhar num pesadelo: seus gritos e ameaças, seus rancores expostos qual feridas negras. Interromperam-se para me poupar, talvez, quem sabe apenas para recompor as forças e os argumentos. Mas foi de pouca duração a trégua provocada por minha presença. Trégua precária: os semblantes não se desarmaram. Mastigava ainda restos de pão quando ele me levou até a porta, vai pra rua, vai, meu filho.

Entendo o significado da pressão de seus dedos e retiro os pés da água. Seu dorso de baleia se move e espero que agora ela me encare, que me mostre o rosto onde posso adivinhar vestígios de sua noite escura. Nada acontece, entretanto, a não ser que ela me envolve pernas e pés com uma toalha macia, me aperta contra o peito, e assim fica, por muito tempo, talvez sem coragem para o gesto seguinte.

Gostaria de ficar assim aninhado indefinidamente, sem passado ou futuro, sem pensamentos, neste conforto de penumbra e calor. Mas então ela me larga sobre a cadeira, meus pés já secos dependurados, e ergue-se, subitamente resoluta, carregando na direção da janela aberta as verberações efêmeras deste oceano que por alguns instantes me fascinara. Tudo tão rápido que mal tenho tempo de perceber que a água da bacia está salgada.

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